segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

 

Não posso prender o tempo às linhas da minha mão,

mas posso acordar o vento,

dobrar a linha da sorte, personalizar o mastro

e moldar um barco no chão.

 

Não posso colher o mar na geografia dos dedos,

Mas posso cavar um poço,

guardar a água da chuva,

largar o barco à deriva

e repensar os meus medos.

 

Maria da Fonte




sexta-feira, 18 de novembro de 2022

 


Ontem

inventei o espanto

quando, num jogo de palavras,

me falavas dos meninos que criaram a fome

para maçar a gente de família,

com pia de batismo,

nome e sobrenome.


Ontem

estava sem o tempo contado

e uns trocos no bolso

para comprar cerveja.

Por isso, poeta,

me embebedei de toda a injustiça do mundo.

 

Ontem

afiei o lápis desnutrido

como lâmina

e cortei os dedos,

um a um,

a quem, por vício ou desgarrada,

mutilou a mulher

que podia ter sido

minha mãe.

 

Agora,

enquanto a tarde me morre na folha

e esta gente se empilha

num fora de jogo,

eu imagino-me

empoleirada nas cores de meu país

a recuperar a posse da bola.

Maria da fonte



 

 

 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

 



O que eu queria

era fazer dos teus olhos escuros e parados

uma ponte.

Imprimir janelas nos escombros,

erguer pilares

e tudo o que é suposto.

 

O que eu queria era que tu

 restaurasses, do drama subterrâneo,

as réplicas de Van Gogh.

Que limpasses os homens de farrapos

e as manchas de chumbo.

 

O que eu queria era que tu me falasses

das vindimas

e que o sol coubesse inteiro

e limpo

no teu rosto.

 Maria da Fonte

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

 

Aquietam-se nos meus olhos

as árvores secas e a lua

ainda morna nos telhados.

 

Atravesso as cinzas da batalha,

a vida dói-me e prende-me neste adeus.

 

Parece tudo morto à minha frente.

Os pássaros encolhem-se nas asas,

as crianças às janelas pedem versos.

 

Eu com esta tosca poesia,

e a terra sem um pedaço de céu.


 Maria da Fonte




sábado, 27 de agosto de 2022

 



Amigos, o mais incrível que me aconteceu

foi eu dar o dito por não dito,

pôr este olhar recôndito de caramujo,

bater com a mão no peito em nome de Cristo

e deixar de ser ateu.

 

Esta ideia de servir o profeta, confesso-vos,

deixa-me descansado.

Digamos que é como se houvesse uma espécie

de novo mundo,

uma rua estreita, em pedra portuguesa,

sem ninguém nas margens,

 só um Deus ao fundo.

 

 Vejamos então,

 Deus não me incomoda.

 Não me fala alto, não me cheira mal,

não segreda avulso nem me pede esmola.

 

Foi daí que eu

comprei um rosário na Feira da Ladra

Já muito em conta.

 

Pendurei na porta

e ganhei o céu.

 

Maria da Fonte

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

 



Como tu sabias que havia outra gente,

de raízes frágeis e nome vulgar.

Gente empoleirada

em dois palmos de tarde

e vagões de carga.

De corpos tão magros,

quase sem lugar.

 

Como tu sabias das últimas chuvas,

dos pés dos meninos cobertos de pó,

dos tanques de guerra,

de abrigos escuros,

da morte que tarda,

do cheiro a pólvora,

da medida exata, do tamanho de tudo.

 

 

E como tu sabias tão airosamente,

 de olhos fechados e sem soletrar,

arquivar a gente.

 

 Maria da Fonte

sábado, 6 de agosto de 2022

 

Se calhar este

regresso pontual

ao meu sorriso desprevenido

confunde o fuso horário

 dos passageiros.

 

Mas eu,

já sem paciência para decifrar

as letras miudinhas,

olho pela janela

e divirto-me com as façanhas de um gato.



Maria da Fonte

 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

 






Amigos, levantemos a meia haste

alguns dos nosso motes.

É preciso que se vejam além das nossas varandas.

Ergamo-los até onde o braço der.

 

E assim de mãos nuas,

alinhemos a marcha

e agarremos ao peito o dia inteiro e limpo

como um cravo.

 

Então, os que caminham sem rosto,

calados e tristes,

a mastigar as lágrimas

(sem o detalhe dos poetas),

podem seguir connosco.


   Maria Da Fonte


segunda-feira, 7 de março de 2022

 


Arranquem o meu nome do chão,

sacudam-me as raízes

e desliguem o som,

que eu quero apagar

os fantasmas

que me dançam no cérebro.

 

 

Contemplem o sabor da morte,

mas encerrem a rotação da terra,

que eu tenho vergonha

que alguém dê pela nossa sombra.

 

Maria da Fonte

quinta-feira, 3 de março de 2022

                                                                      





Já quase não há meninos

por esses lados.

Chegam irremediavelmente sós

 com uma lista de sonhos.

 

Por aqui, as prateleiras ficam altas

e os artigos andam fora de lugar.

 

Não sei se os meninos sabem de cor

 as hipotecas,

se os pais esperam pelo almoço,

 

nem sequer se haverá tempo

para os aviar.

 

Maria da Fonte

 

 

 


terça-feira, 18 de janeiro de 2022


 

«Dobrada entre os crocodilos»

(Adília Lopes)

 

Sempre que a noite vem de véspera,

enrosca-se como um embrião,

deixa cair os braços

na neblina,

os olhos perdem-se na rota.

 

As palavras param no vagar dos gestos,

as horas morrem-lhe na boca.

 

E como se não bastassem

as calças puídas

 e a sombra tímida nos dedos,

os dias afundam-se nos bolsos.

 

A ausência chega rouca.

 

Maria da Fonte

 

domingo, 2 de janeiro de 2022

 




Avó,

deixa o tacho sossegado

e vem refastelar-te no veludo

encardido

da vida corriqueira.

 

Olha, avó,

um acrobata,

um sentado à porta do paraíso,

outro que chama ao vesúvio

cogumelo.

 

Que macios ficam os dias

sem Pompeia!

 

E os homens em ponto caramelo.

 

Maria da Fonte