sábado, 9 de outubro de 2021

 



Aporto no espelho o rosto engelhado.

Imagino canais e um barco de junco.

Conservo ainda nas mãos tiritantes

a escova de nylon

e o vacilar do vento.

 

Do detalhe do barco ao grande plano

das madeixas no rosto

e as rugas ao fundo,

ressaltam os lábios a sulcar as ondas,

os olhos redondos

e o mapa do mundo.

 

Um rímel, um lápis,

um batom. Talvez.

Que nos intervalos das canções que levo,

 no espelho que tenho,

só morra uma vez.

 

Maria da Fonte

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra10439/mulher-no-espelho

terça-feira, 31 de agosto de 2021

 


Por encomenda, articularam-me os gestos.

A rotina de uma mulher sem rosto

que arruma o olhar no fundo da gaveta.

 

Aproveitei as correntes de ar,

dei formas às cortinas,

eco aos pássaros

e carreguei os sonhos para parte incerta.

 

Se me perguntarem o que sobrou de mim,

um espaço despido

nas ranhuras da mão,

um voo nos bolsos

e o amor a uma distância incalculável.

 

Maria da Fonte

terça-feira, 17 de agosto de 2021

 


Imagina que a terra é um planeta

entre papiros, pergaminhos e papéis.

Entre camadas e placas movediças,

medidas calculadas de revistas,

ângulos e perímetros

de jornais.

 

Imagina que a terra é tudo isto.

Marilyn Monroe,

quase um vulcão

na sua saia rodada.

 

E mais tu e eu e biliões

como rastilhos.

 

O flash do tamanho de uma mala.

 

Maria da Fonte

Pintura Edy Freitas

 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

 








Aqui acaba o ruído mundo.

As mãos cortam as ondas

e os olhos abraçam o mar sem entraves.

 

Eu prossigo em pés de areia até ao poema,

sob olhar atento das rochas em fuga

 

e a cumplicidade, sem raízes, das aves.

 

Maria da Fonte



domingo, 1 de agosto de 2021

 







Nua de peito

porque toda eu sou desnorte

para desolação dos justos.

 

Vergar-me para varrer do corpo este pecado?


Só se for para alongar

 o lampejar lascivo

do decote.


Maria da Fonte

sexta-feira, 16 de julho de 2021

 


 

Ficar em bicos de pés, não posso.

Cansa-me esta terrível dor nos ossos.

Nem sequer levantar a cabeça

para ver qual de vós é maior.

 Mas nem tudo se perdeu, amigos.

Perdoem-me a conveniência.

Aproveito a vossa sombra

para desenrolar o corpo,

amar as pedras,

tirar uma sesta.

 

O resto é sobrevivência.




Maria da Fonte

Imagem retirada da internet

quarta-feira, 30 de junho de 2021

 


Deixe-me aqui, doutor, na tarde morna,

presa ao gesto atordoado dos meus dedos

e ao som do abraço repetido.

 

Devagar o dia é mais nítido.

Ontem foi primavera.

Hoje, doutor, deixe-me assim,

nesta varanda sem fôlego

a segurar o olhar que então perdi.


Maria da Fonte

sexta-feira, 18 de junho de 2021


 

Se eu não couber nos teus olhos,

poderá não ser urgente.

 

Há tantos gatos de rua,

de olhos rasgados pelo vento,

a ronronar  como barcos,

e um mar à minha frente.

 

Maria da Fonte

quinta-feira, 1 de abril de 2021

 


Ainda assim, alinhas os pássaros

por trás do destino.

Emendas o friso, pontilhas as asas

em curtos prefácios,

soletras o fôlego discreto dos ninhos.

 

Ainda assim, evocas as ondas

sem saber ao certo a leveza dos traços.

Hidratas as rugas, retocas as rotas

e vestes o rosto, molhado,

 de barcos.

 

 Ainda assim, crias pontos de fuga,

ajustas as sombras

à escala tonal.

 

Tivesses tu tempo,

combinavas as cores

e davas à tela um toque final.

 


Maria da Fonte

terça-feira, 23 de março de 2021

 


Nos intervalos do vento,

pressiona mais a mão.

 

Move o lápis devagar por entre pontos e linhas,

numa simetria básica,

a sugerir rotação.

 

Assim de braços abertos,

fica o homem e o subalterno.

 

O esboço a deslizar

pela rotina do traço,

 

numa espécie de contraste

entre o céu e o inferno.



  Maria da Fonte

Homem Vitruviano

sábado, 27 de fevereiro de 2021

 


Com as palavras que me deste

fiz um rascunho.

Guardei um abraço por instinto.

Depois, deixei cair as mãos,

atravessei os dias,

envelheci por aí o pensamento.

 

Agora, que o silêncio me alaga os dedos

 e os  braços estão sem margens,

podia passar tudo a limpo.


Maria da Fonte

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

 


Difícil

é guardar-te na parede

sem o cheiro sequer do teu cansaço.

E os meus dedos cravados na moldura,

imaginar-te partir sem um abraço.

 

Difícil

é colar o meu ouvido ao teu medo

e fingir que, distraída, não ouvi.

Passar os olhos de pavor pela parede

e sentir que esse pavor vinha de ti.

 

Difícil

 é deixar cair o choro

no silêncio da parede que o colheu.

Encostar o teu retrato ao meu peito

e pensar que o meu choro era o teu.

 

 Maria da Fonte

 

domingo, 31 de janeiro de 2021

 


Ao fim da minha rua

há um violino de peito maciço e ancas largas.

Pela madrugada brinda-nos com Bach,

às oito da manhã afina as cordas.

 

Depois há musical em digressão.

Pregas vocais abertas como arcadas, homens de bocas disformes

às janelas, mulheres em varandas desgrenhadas.

 

No quarto andar, em jeito de soprano,

há pelas cadeiras toalhas e um tacho.

Da janela guilhotina, com ares de bilheteira,

sai um penálti em barítono

e um baixo.

 

Em ponto, um som metálico e fumarento

e o trecho de um bacalhau à brás.

Em ré, uma corda descontrolada

e a silhueta agoirenta de um rapaz.

 

Soltam-se as vozes.

Nessa hora, cai o pano. As notas musicais

saem de cor.

O violino aveludado jaz sem formas.

 

O barítono, pela madrugada, em sol maior.

 

 Maria da Fonte