sábado, 27 de agosto de 2022

 



Amigos, o mais incrível que me aconteceu

foi eu dar o dito por não dito,

pôr este olhar recôndito de caramujo,

bater com a mão no peito em nome de Cristo

e deixar de ser ateu.

 

Esta ideia de servir o profeta, confesso-vos,

deixa-me descansado.

Digamos que é como se houvesse uma espécie

de novo mundo,

uma rua estreita, em pedra portuguesa,

sem ninguém nas margens,

 só um Deus ao fundo.

 

 Vejamos então,

 Deus não me incomoda.

 Não me fala alto, não me cheira mal,

não segreda avulso nem me pede esmola.

 

Foi daí que eu

comprei um rosário na Feira da Ladra

Já muito em conta.

 

Pendurei na porta

e ganhei o céu.

 

Maria da Fonte

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

 



Como tu sabias que havia outra gente,

de raízes frágeis e nome vulgar.

Gente empoleirada

em dois palmos de tarde

e vagões de carga.

De corpos tão magros,

quase sem lugar.

 

Como tu sabias das últimas chuvas,

dos pés dos meninos cobertos de pó,

dos tanques de guerra,

de abrigos escuros,

da morte que tarda,

do cheiro a pólvora,

da medida exata, do tamanho de tudo.

 

 

E como tu sabias tão airosamente,

 de olhos fechados e sem soletrar,

arquivar a gente.

 

 Maria da Fonte

sábado, 6 de agosto de 2022

 

Se calhar este

regresso pontual

ao meu sorriso desprevenido

confunde o fuso horário

 dos passageiros.

 

Mas eu,

já sem paciência para decifrar

as letras miudinhas,

olho pela janela

e divirto-me com as façanhas de um gato.



Maria da Fonte