sábado, 23 de dezembro de 2023

 



Já se veem os reis magos

a louvar o salvador

na manjedoura de pedra

sem guizo nem cobertor.

 

Trazem orações nos lábios,

presentes para ofertar.

Gaspar, um explosivo;

Melchior, a bomba esponja

e Baltazar talvez traga

a bomba nuclear.

 

As ofertas deixam tudo

muito bem iluminado.

Vê-se a Maria a chorar,

o menino encolhido

e José envergonhado.

 

Se houvesse lá um pinheiro,

que não o há, por sinal,

eu pendurava-lhe as bombas,

punha a minha playlist,

chamava o coro dos anjos

e celebrava o Natal.

 

Maria da Fonte

domingo, 8 de outubro de 2023

 



Eram oito em ponto da manhã,

eu circundava um autocarro na central.

O jardineiro de minha mãe (belo galã!)

rumava sem aviso à capital.

 

Tinha-me dito um dia, aborrecido,

ao dividir seis dentes de leão,

que já os tinha contado e dividido

oitenta vezes pelos dedos da mão.

 

 

Não suportava as contas matinais

que minha mãe, ao rubro, lhe pedia.

Que era melhor ciências naturais,

depois, e só depois, biologia.

 

Vi de soslaio fugir a empregada

aos encontrões e gritos entre a gente.

Que era formada e mais do que formada,

que minha tia a corrigia sempre.

 

 

Acutilada, também eu relembrei

aqueles longos anos sem aumento,

o pão de ló roubado a minha mãe

e o acesso direto ao parlamento.

 

Impaciente, comprei o meu bilhete.

Imaginei os dois em estado bruto.

Eu alojado num qualquer palacete,

eles a ler num qualquer viaduto.

 

 

E já com tiques altivos do poder,

lá fomos nós então de boa fé.

Eu estendia o contrato para ler,

e encobria ao de leve o rodapé.


Maria da Fonte

 

 

terça-feira, 15 de agosto de 2023



Embora nada saibas de números

e estatística,

 podes sempre imaginar-te a última reserva de água,

e com um pedaço de argila

 desenhar em grande escala

os moldes do teu vestido,

mas não perturbes o silêncio

de quem está

com a geografia rodada do teu eco

e o mapa amarrotado

 do tecido.


Maria da Fonte

Imagem retirada da internet


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

 


De relance, reparo

na fluidez com que partituras empilhadas

abrem caminho pela multidão

e navegam na desordem das ruas.

 

Procuro-me em todos os pontos de fuga, 

e o ritual desvelado da brisa

traz-me de longe um violino trôpego,

feito de notas de arquivo

e de um som pouco claro.


Maria da Fonte

segunda-feira, 17 de julho de 2023

 




Às vezes, com medo de deixar cair o poema

fora do mapa,

cerro os dentes,

levo-o até casa na boca.  

 

E enquanto ele se escoa lentamente

junto à porta de entrada,

abre ecos pelos degraus

e ganha formas ao fundo,

eu sonho em arrastá-lo

como um gato até

ao resto do mundo.


Maria Da Fonte

sexta-feira, 2 de junho de 2023

 

Lembra-te dos soldados de Esparta

 e deixa-te ficar na posição de tiro.

 

Se alguém te apontar, por ironia,

um santuário, ilumina-lhe a entrada.

Talvez ele queira saber do resto do exército

e dos campos de treino.

 

Fala-lhe do cerrar de fileiras,

das tintas a óleo, da armação de madeira, 

do pedaço de lona.

 

Depois. Só depois, do espólio. 

Maria da Fonte 

segunda-feira, 1 de maio de 2023

 


Naquele tempo,

a noite tinha por hábito

dar-me um beijo

que eu desenhava um pouco acima da sua voz rouca.

 

Foi nos seus braços abertos que aprendi

a organizar o tráfego das sílabas

e a técnica de acender

os sonhos com a boca.

 

Maria da Fonte


quarta-feira, 8 de março de 2023

 



Fascina-me a ideia de explodir
na boca dos poetas.
Correr a cortina
e titubear, estrada fora, o alfabeto.
 
Não fossem as tardes chuvosas,
a cumplicidade dos advérbios de lugar
e este dia
confiscado por decreto.
 
Maria da Fonte
 
 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

 




A liberdade, mãe, de que me falas

é esta bola de creme

que eu tirei da gaveta,

com recheio e arestas

como o grau de uma potência

ou a fórmula secreta

de qualquer equação.

Sou livre de a comer,

que me custou o cansaço

de quatro lombas de estrada,

uma escada em caracol,

três palmos de sobressaltos

e os cálculos do corrimão.

 

Imagina, mãe, agora

que há valores e variáveis

na minha definição.

Quem faça contas pelos dedos,

quem saiba as contas de cor,

quem pense que a liberdade

é ter um bolo na mão.

 

 Maria da Fonte