Atravessei contigo o fim da noite,
limpei das nuvens
o pensamento baço.
E, para que a sombra te não matasse
os dias,
resgatei-te o sopro
e segurei-te o braço.
Já se veem os reis magos
a louvar o salvador
na manjedoura de pedra
sem guizo nem cobertor.
Trazem orações nos lábios,
presentes para ofertar.
Gaspar, um explosivo;
Melchior, a bomba esponja
e Baltazar talvez traga
a bomba nuclear.
As ofertas deixam tudo
muito bem iluminado.
Vê-se a Maria a chorar,
o menino encolhido
e José envergonhado.
Se houvesse lá um pinheiro,
que não o há, por sinal,
eu pendurava-lhe as bombas,
punha a minha playlist,
chamava o coro dos anjos
e celebrava o Natal.
Maria da Fonte
Eram oito em ponto da manhã,
eu circundava um autocarro na central.
O jardineiro de minha mãe (belo galã!)
rumava sem aviso à capital.
Tinha-me dito um dia, aborrecido,
ao dividir seis dentes de leão,
que já os tinha contado e dividido
oitenta vezes pelos dedos da mão.
Não suportava as contas matinais
que minha mãe, ao rubro, lhe pedia.
Que era melhor ciências naturais,
depois, e só depois, biologia.
Vi de soslaio fugir a empregada
aos encontrões e gritos entre a gente.
Que era formada e mais do que formada,
que minha tia a corrigia sempre.
Acutilada, também eu relembrei
aqueles longos anos sem aumento,
o pão de ló roubado a minha mãe
e o acesso direto ao parlamento.
Impaciente, comprei o meu bilhete.
Imaginei os dois em estado bruto.
Eu alojado num qualquer palacete,
eles a ler num qualquer viaduto.
E já com tiques
altivos do poder,
lá fomos nós
então de boa fé.
Eu estendia o
contrato para ler,
e encobria ao
de leve o rodapé.
Maria da Fonte
Embora nada saibas de números
e estatística,
podes sempre imaginar-te a última reserva
de água,
e com um pedaço de argila
desenhar em grande escala
os moldes do teu vestido,
mas não perturbes o silêncio
de quem está
com a geografia rodada do teu eco
e o mapa amarrotado
do tecido.
Maria da Fonte
Imagem retirada da internet