quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 


                                                                                            Talvez a mão esquerda

vá sem jeito

e a direita não seja mais o que era.

 

Talvez uma estrela mais a norte,

ou a norte a luz que entendas seja rara.

  

Talvez o declive do teu braço

seja o acaso ou só delicadeza,

e o tempo que medeia cada traço

seja a brisa que te leva ou te separa.

  

Talvez o engenho, meu amigo,

esteja na arte da saber arredondar

as formas planas do teu dia

no rosto limpo

da pedra lapidar.


Maria da Fonte 


quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

 


 

Ponho sorrisos redondos

nos soldados

como os trocos

que trago lá por casa.

 

E com o fio rasgado da navalha

desprego da parede

o voo raso

e dou sombra latente cada bala.

 

E depois das coisas acabadas,

enrolo a escuridão em espiral,

 

agito os cortinados das janelas,

moldo famílias inteiras com os olhos,

sirvo a ceia

na mesa principal.


Maria da Fonte


 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024



Não peço licença

à cobra que me calça

nem lanço palavra

a qualquer borboleta.

 

Não permito o voo leve

da andorinha

com ares de senhora

de quem vai e vem.


Enfada-me a velha

que insiste em ficar

e as crianças que embalam

o bordado de alguém.


Arrelia-me o galo a cacarejar

pelos cantos do vento

sem clave de sol

e sem fado na voz.

 

Não suporto os gatos

pelas pedras do pátio,

nem o bife de vaca

cortado em viés.

 

Cuspo quando sinto

os ossos na boca

sem deslize algum,

ou qualquer pirueta.


Soletro devagar,

haja quem me ouça,

que eu sou o mundo e o mundo é,

sem pedir licença,

a minha silhueta.

 

 

Maria da Fonte


domingo, 13 de outubro de 2024

 



Quando eu morrer, Cecília,

talvez os galos não cantem mais à minha volta,

talvez não haja brisa, nem mãos delicadas,

que já não é moderno,

só pilares de cimento e frases largadas

de valas, pedras, pó, pás

e larvas na boca.

 

Quando eu morrer, Cecília,

não quero as mãos cruzadas no peito,

um sorriso de seda

e um vestido de roda bordado inglês,

antes uma tigela de marmelada na boca

a desafiar as formigas,

um pregão nos olhos

e as mãos soltas

para coçar os pés.

 

 

Quando eu morrer, Cecília,

diz-lhes que não precisam de me medir os quadris

para ajustar o tecido.

Lembra-lhes ainda, Cecília,

(talvez eles não tenham dado por isso)

que eu morri tanta vez

dentro do mesmo vestido.

 

 Maria da Fonte

quarta-feira, 9 de outubro de 2024



Não me cobrem

mais nada.

Perdi os dias para o negócio,

agora deixem-me ver

como se move uma andorinha

no ar.

 

Doravante,

deixem-me ser o ponto mal costurado,

o suspiro amarrotado na lombada,

a palavra despenhada

e o avesso da frase

por saldar.

 

Não precisam

de me falar da jornada

nem de me amparar o gesto retalhado,

basta que me deixem

subir degrau a degrau

a vertigem do sonho

sem lugar.

 

 Maria da Fonte


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

 


Toda a gente à romaria

De pandeireta na mão,

Numa chula ritmada

Da Lapa até São João.

 

Já sobem como flechas

Pelas calçadas "apinho"

As vozes esganiçadas

Das raparigas do Minho.

 

Os tocadores expeditos

Largam cantigas furtivas

E confiam nas respostas

Gaiteiras das raparigas.

 

Vai de roda, vai de roda,

Dizem cheios de chieira,

O Lima é nossa haste

A terra a nossa bandeira.

 

Maria da Fonte

 


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 

Quis,

antes de partir,

 que a tela despisse

todo o seu cansaço

e desse um novo rumo

ao rosto despenhado.

 

Alargou as lágrimas

com um traço largo,

pôs árvores

nas margens e,

 

sem nenhum recado,

levantou o vento,

disse adeus aos netos

e desceu de barco

para qualquer lado.


 Maria da Fonte