Fascina-me a ideia de explodir
na boca dos poetas.
Correr a cortina
e titubear, estrada fora, o alfabeto.
Não fossem as tardes chuvosas,
a cumplicidade dos advérbios de lugar
e este dia
confiscado por decreto.
Maria da Fonte
A liberdade, mãe, de que me falas
é esta bola de creme
que eu tirei da gaveta,
com recheio e arestas
como o grau de uma potência
ou a fórmula secreta
de qualquer equação.
Sou livre de a comer,
que me custou o cansaço
de quatro lombas de estrada,
uma escada em caracol,
três palmos de sobressaltos
e os cálculos do corrimão.
Imagina, mãe, agora
que há valores e variáveis
na minha definição.
Quem faça contas pelos dedos,
quem saiba as contas de cor,
quem pense que a liberdade
é ter um bolo na mão.
Não posso prender o tempo às linhas da minha mão,
mas posso acordar o vento,
dobrar a linha da sorte, personalizar o mastro
e moldar um barco no chão.
Não posso colher o mar na geografia dos dedos,
Mas posso cavar um poço,
guardar a água da chuva,
largar o barco à deriva
e repensar os meus medos.
Maria da Fonte
Ontem
inventei o espanto
quando, num jogo de palavras,
me falavas dos meninos que criaram
a fome
para maçar a gente de família,
com pia de batismo,
nome e sobrenome.
Ontem
estava sem o tempo contado
e uns trocos no bolso
para comprar cerveja.
Por isso, poeta,
me embebedei de toda a
injustiça do mundo.
Ontem
afiei o lápis desnutrido
como lâmina
e cortei os dedos,
um a um,
a quem, por vício ou desgarrada,
mutilou a mulher
que podia ter sido
minha mãe.
Agora,
enquanto a tarde me morre na folha
e esta gente se empilha
num fora de jogo,
eu imagino-me
empoleirada nas cores de meu país
a recuperar a posse da bola.
Maria da fonte
O que eu queria
era fazer dos teus olhos escuros e
parados
uma ponte.
Imprimir janelas nos escombros,
erguer pilares
e tudo o que é suposto.
O que eu queria era que tu
restaurasses, do drama subterrâneo,
as réplicas de Van Gogh.
Que limpasses os homens de
farrapos
e as manchas de chumbo.
O que eu queria era que tu me
falasses
das vindimas
e que o sol coubesse inteiro
e limpo
no teu rosto.
Aquietam-se nos meus olhos
as árvores secas e a lua
ainda morna nos telhados.
Atravesso as cinzas da batalha,
a vida dói-me e prende-me neste adeus.
Parece tudo morto à minha frente.
Os pássaros encolhem-se nas asas,
as crianças às janelas pedem versos.
Eu com esta tosca poesia,
e a terra sem um pedaço de céu.
Amigos, o mais incrível que me aconteceu
foi eu dar o dito por não dito,
pôr este olhar recôndito de caramujo,
bater com a mão no peito em nome de Cristo
e deixar de ser ateu.
Esta ideia de servir o profeta, confesso-vos,
deixa-me descansado.
Digamos que é como se houvesse uma espécie
de novo mundo,
uma rua estreita, em pedra portuguesa,
sem ninguém nas margens,
só um Deus ao fundo.
Vejamos então,
Deus não me incomoda.
Não me fala alto, não
me cheira mal,
não segreda avulso nem me pede esmola.
Foi daí que eu
comprei um rosário na Feira da Ladra
Já muito em conta.
Pendurei na porta
e ganhei o céu.