quarta-feira, 8 de março de 2023

 



Fascina-me a ideia de explodir

na boca dos poetas.

Correr a cortina

e titubear, estrada fora, o alfabeto.

 

Não fossem as tardes chuvosas,

a cumplicidade dos advérbios de lugar

e este dia

confiscado por decreto.


Maria da Fonte

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

 




A liberdade, mãe, de que me falas

é esta bola de creme

que eu tirei da gaveta,

com recheio e arestas

como o grau de uma potência

ou a fórmula secreta

de qualquer equação.

Sou livre de a comer,

que me custou o cansaço

de quatro lombas de estrada,

uma escada em caracol,

três palmos de sobressaltos

e os cálculos do corrimão.

 

Imagina, mãe, agora

que há valores e variáveis

na minha definição.

Quem faça contas pelos dedos,

quem saiba as contas de cor,

quem pense que a liberdade

é ter um bolo na mão.


 Maria da Fonte

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

 

Não posso prender o tempo às linhas da minha mão,

mas posso acordar o vento,

dobrar a linha da sorte, personalizar o mastro

e moldar um barco no chão.

 

Não posso colher o mar na geografia dos dedos,

Mas posso cavar um poço,

guardar a água da chuva,

largar o barco à deriva

e repensar os meus medos.

 

Maria da Fonte




sexta-feira, 18 de novembro de 2022

 


Ontem

inventei o espanto

quando, num jogo de palavras,

me falavas dos meninos que criaram a fome

para maçar a gente de família,

com pia de batismo,

nome e sobrenome.


Ontem

estava sem o tempo contado

e uns trocos no bolso

para comprar cerveja.

Por isso, poeta,

me embebedei de toda a injustiça do mundo.

 

Ontem

afiei o lápis desnutrido

como lâmina

e cortei os dedos,

um a um,

a quem, por vício ou desgarrada,

mutilou a mulher

que podia ter sido

minha mãe.

 

Agora,

enquanto a tarde me morre na folha

e esta gente se empilha

num fora de jogo,

eu imagino-me

empoleirada nas cores de meu país

a recuperar a posse da bola.

Maria da fonte



 

 

 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

 



O que eu queria

era fazer dos teus olhos escuros e parados

uma ponte.

Imprimir janelas nos escombros,

erguer pilares

e tudo o que é suposto.

 

O que eu queria era que tu

 restaurasses, do drama subterrâneo,

as réplicas de Van Gogh.

Que limpasses os homens de farrapos

e as manchas de chumbo.

 

O que eu queria era que tu me falasses

das vindimas

e que o sol coubesse inteiro

e limpo

no teu rosto.

 Maria da Fonte

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

 

Aquietam-se nos meus olhos

as árvores secas e a lua

ainda morna nos telhados.

 

Atravesso as cinzas da batalha,

a vida dói-me e prende-me neste adeus.

 

Parece tudo morto à minha frente.

Os pássaros encolhem-se nas asas,

as crianças às janelas pedem versos.

 

Eu com esta tosca poesia,

e a terra sem um pedaço de céu.


 Maria da Fonte




sábado, 27 de agosto de 2022

 



Amigos, o mais incrível que me aconteceu

foi eu dar o dito por não dito,

pôr este olhar recôndito de caramujo,

bater com a mão no peito em nome de Cristo

e deixar de ser ateu.

 

Esta ideia de servir o profeta, confesso-vos,

deixa-me descansado.

Digamos que é como se houvesse uma espécie

de novo mundo,

uma rua estreita, em pedra portuguesa,

sem ninguém nas margens,

 só um Deus ao fundo.

 

 Vejamos então,

 Deus não me incomoda.

 Não me fala alto, não me cheira mal,

não segreda avulso nem me pede esmola.

 

Foi daí que eu

comprei um rosário na Feira da Ladra

Já muito em conta.

 

Pendurei na porta

e ganhei o céu.

 

Maria da Fonte