sábado, 14 de dezembro de 2019

Ponte da Barca


Na minha terra há santos populares
e serras em correria
que fazem lembrar peregrinações.

Poetas em parágrafos suspensos,
negociadores do tempo a retalho
e pássaros a copular sem cálculos e retóricas.


Na minha terra, as mulheres galgam
a artilharia de palavras mais despachadas que setas,
agitam as vírgulas como cabos
e redobram as vigílias dos profetas.


Porque, na minha terra, há mulheres redondas
como punhos e homens
que aproveitam a vertigem
para dar formas concretas aos sonhos.

Maria da Fonte








sexta-feira, 29 de novembro de 2019

E pelo olhar de viés Que me lançou de repente, Julguei-o, mais uma vez, Agarrado a uma corrente.  Um terço , tinha a certeza, E a oração no começo. Ele, com toda a franqueza, “Um terço, ficou um terço”.  Já no segundo mistério, Dizia-lhe eu entretanto. Ele pesaroso e sério, “Não sei como encolheu tanto”.  E gritava, metia dó. “Se não voltar a crescer, Eu posso então morrer E que vire tudo pó

Pensei por breves instantes
ser um velho em oração,
em prantos pouco elegantes
no patamar do portão.


E pelo olhar de viés
que me lançou de repente,
julguei-o, mais uma vez,
agarrado a uma corrente.

Um terço , tinha a certeza,
e a oração no começo.
Ele, com toda a franqueza,
“Um terço, ficou um terço”.

Já no segundo mistério,
dizia-lhe eu entretanto.
Ele pesaroso e sério,
“Não sei como encolheu tanto”.




Velho Triste No Portão da Eternidade,Vincent Van Gogh
Maria da Fonte


domingo, 3 de novembro de 2019

Meu amor

Nesta noite, meu amor,
nem as palavras em brasa
chegarão.
Quero as chamas
a rasar os dedos,
os olhos a trepar faúlhas,
como montanhas a galgar o chão.

Nesta noite, meu amor,
faz-te frondoso
na labareda arisca onde me rendo.


Se isto for morte, meu amor,
não me repreendas.

Se isto for morte, meu amor,
eu não me emendo.

domingo, 20 de outubro de 2019

A cada ruído o coração rebenta
e faz-se pavor no interior de nós.

Então, esperamos nos olhos dos outros,
como que querendo deixar-se ali estar.

Descemos, depois, por um rosto assustado,
com a pressa de quem
finge nem olhar.

Seguimos pela noite carregadas de balas,
ajustando o silêncio ao que nos couber.

Ninguém reivindica,
ninguém apura os factos,

ninguém sabe bem que contas fazer.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

O mundo no poema


No poema
o mundo embaraça. Não dá jeito nenhum
em nenhum lado. Na mesa destoa da jarra e do retrato,
nas gavetas fica enorme e é pesado.

Atirava-o sorrateiramente pela janela,
como quem deixa cair a bola ao chão. Escondia-o
debaixo do tapete ou prendia-o pela corrente ao meu portão.

E não é que eu seja impertinente,  desleixada, impaciente
 ou de má raça, mas é que, sempre que entra
no poema, o mundo esperneia e faz pirraça.



Maria da Fonte

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Abril é abrandar o passo




                                      
Abril é abrandar o passo

quando levo o meu filho pela mão,
dizer-lhe em palavras pequeninas
que Abril não se faz sem coração.
Abril é o meu super-herói 
e há de ser o seu herói também,
é só desafiar cada limite
dos sonhos que se veem mais além. 
Abril é de todos, digo-lhe eu.
É de gente grisalha e gente à rasca,
do doutor de cravo na lapela
e do homem que apodrece ao pé da tasca. 
Abril é do menino abandonado
que soletra a esmola já de cor
e do menino que o leva pelo braço
e lhe diz que Abril é bem maior.

Abril poderá ser liberdade

quando abrandar o passo mais alguém
e disser claramente a uma criança
que Abril não é só de quem o tem.


Maria da Fonte

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019



Cravem-me os dias nos ossos,
Sucumba, se for preciso.

Que no atril do choro
seja manhã, meu amor,
se a minha boca couber
inteira  no teu sorriso.

Maria da Fonte