segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

 



São cogumelos abertos,

os beijos do meu amor.

Nascem em troncos de outono,

como nascem as formigas,

e, em dias de muita chuva,

abrigam o meu senhor.

 

Salteados como lâminas

nas margens do rio Tormes,

os beijos do meu amor,

livres, sem dono marcado,

viajam na minha boca

 e na outra boca ao lado.

 

Maria da Fonte

terça-feira, 25 de novembro de 2025

 

À noite,

escorrem-me pelas paredes

pensamentos carregados de pelo,

orelhas pontiagudas

e finas membranas entre os dedos.

 

À noite,

ombro a ombro comigo,

quando nem o coração

enche o meu quarto vazio.


 Maria da Fonte

sábado, 15 de novembro de 2025

 

 

Não importa à liberdade

o peso da tua roupa,

a tempestade da voz,

ou o olhar visceral.

 

Que a liberdade não traz

os números de uma balança,

nem o veludo das formas,

nem lâminas luminosas,

nem ouvidos de metal.

Maria Da Fonte

Monumento à Liberdade, de Jorge Vieira



sexta-feira, 14 de novembro de 2025

 

Para a velhice,

fiz os pássaros mais rasos.

 

Sou quase nuvem,

e há quem diga por aí que agora

só preciso de erguer uma gaiola.


Maria da Fonte

sábado, 11 de outubro de 2025

 


 

Há saudades que ali ficam,
presas às tintas do muro.

São beijos cheios de frio
que anoitecem como bússolas
e moram dentro de tudo.

Há saudades que nos chamam
e nos param de repente,

que chegam como um combate
sem contornos definidos
e nos moldam lentamente.

 

Maria da Fonte

terça-feira, 29 de julho de 2025

 


                                                 

Quando eu nasci, as manhãs chegavam,

sem o estudo do mercado,

com as horas fermentadas

e sabor a feijão branco.

 

Quando eu nasci, a voz de minha mãe

subia a passo firme

pelas janelas

e o céu andava sempre pelos telhados.

 

 

Depois, chegaram os outros

e alguém se lembrou

de me dizer que a terra vacilava

e o sol nem se movia.

 

 

Foi então que eu, já tão morta de cansaço

e já tão desgovernada,

saí sozinha de casa

e caí na poesia.

 

 Maria da Fonte

terça-feira, 22 de julho de 2025

 


Resolveram acabar com a guerra,

já não havia meninos para matar.

 

Os homens de palavra

abriram os braços

com água macia entre os dedos

(para lavar as páginas dos jornais)

 

e os soldados partira sem destino,

com a farda puída de cansaço

e o sonho curvado ao gatilho.


Maria da Fonte

terça-feira, 8 de julho de 2025

 


Faz-te de barro,

frágil como um jarro.

Cheia de medos

e angústias sem nome.

 

Contrai o peito,

arquiva os desaires,

impulsiona a dor até ao chão.

 

Com a palavra mais longa do mercado,

carrega o verbo,

pontua a desgraça.

 

Se ainda houver

quem te não reconheça,

põe-te de cócaras.

 

E, num punhado azedo

de metáforas,

retoca a sombra

redonda dos teus dias.


Maria da Fonte

Imagem retirada da internet

domingo, 15 de junho de 2025

 



Todas as tardes,

de sapatos gastos,

 descia a ladeira

a buzinar ao vento.

 

E agachada

nas curvas de um gato,

atirava as pernas

e trepava o tempo.

 

 

Nos ramos rijos

de arcos de caça,

 desenhava as horas

e esticava a mão.

 

 

Dizia-as maduras

como ampulhetas

ou tambor de férias,

sem cair ao chão.

 

 

Minha mãe ouvia

e simulava a queda

enquanto estendia

a colher da sopa.

 

 

Eu balbuciava

palavras sem margens

que as horas cabiam…

 

E abria a boca.



Maria da Fonte

domingo, 8 de junho de 2025

 

Pois então não esperem de mim

grande ciência.

Em abono da verdade, este meu compromisso

com a vida,

tantas vezes permeável,

Tantas vezes fugaz,

fez de mim soldado

numa guerra que

sabia

de antemão

perdida.

 

Se é natural

que os dias me escorreguem

das mãos sem o apertar do gatilho?

Talvez.

Como os beijos e as flores,

os moldes e os lugares,

o copo e o vinho.

 

 

Deixem-me, por isso, brindar a este tempo

emprestado, que as taxas de juro

andam pela hora da morte,

e eu quero acreditar

que estou longe,

muito longe,

do destino.


Maria da Fonte

quarta-feira, 9 de abril de 2025

 


O mundo arde

aqui mesmo ao meu lado.

Apesar das advertências,

os homens teimam em plantar

eucaliptos que ocupam pouco a pouco

 o lugar da multidão.

 

E eu, com o olhar desarmado,

procuro urgentemente

uma janela,

mas temo que o vento,

sem comando,

me desarticule

o bater do coração.

 

Maria da Fonte

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 


                                                                                            Talvez a mão esquerda

vá sem jeito

e a direita não seja mais o que era.

 

Talvez uma estrela mais a norte,

ou a norte a luz que entendas seja rara.

  

Talvez o declive do teu braço

seja o acaso ou só delicadeza,

e o tempo que medeia cada traço

seja a brisa que te leva ou te separa.

  

Talvez o engenho, meu amigo,

esteja na arte da saber arredondar

as formas planas do teu dia

no rosto limpo

da pedra lapidar.


Maria da Fonte