quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Coisas do quotidiano



O dia fechou a porta simplesmente no trinco, a noite entrou e delineou nas paredes os contornos indefinidos da vida. Ao fundo os sonhos encapelados deixavam tocar as estrelas e fecundar a lua.
Só a névoa leitosa começava a trepar mansamente a encosta e os dias iam-se afogando paulatinamente.
No lusco-fusco da casa, ouvia-se a voz soluçante e áspera do destino.
Desejou arduamente elevar-se no espaço, fugir para além do cenário opressivo das imensas cordilheiras de silêncio que a cercavam, subir ao topo mais alto da vida e sentir
o ar cristalino e cortante da sorte.

Maria da Fonte

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Revés




Os livros não gostavam do seu quarto,
talvez temessem as águas turvas das linhas da mão
ou os trilhos calejados dos montes.
Nunca partilhara o travesseiro de palha com as letras.
Sabia que o pai não suportava o feixe de pernas dos irmãos
e as letras também tinham pernas.

Pudesse ao menos dividir o silêncio
com uma dezena de palavras e erguer na piedosa noite
a sua aldeia, voar por entre as frinchas dos lençóis,
estender o desejo nas nuvens e dormitar ao lado
das estrelas!

Acordava, porém, de madrugada com o bafo
aterrador da noite.
As paredes do sonho demoliam,
as palavras morriam uma a uma,
as lágrimas engoliam a aldeia
e as pálpebras abafavam a dor.



Caía de rompante nos lençóis e voltava a levantar
a primeira pedra.
Pediu um passaporte para o céu,
nunca lhe trouxeram o visto.
Olhava obstinado a fronteira da sorte
e perguntava-se:
como se abrem as portas ao sonho?


Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Para lá dos muros



Se quiseres saber onde moro,
Não tacteies o corpo dissoluto das pedras,
Não devasses a paciência do olhar na nébula geográfica
Das cidades imponentes,
Procura-me antes nas margens do poema,
Onde as palavras ditam a desordem
Dos subúrbios e as ideias mendigam um pedaço de paz.

Maria da Fonte

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Travessia



Subo e desço a montanha
Pelos trilhos do incerto.
No topo fico tamanha,
Só no sopé eu desperto.

Neste subir e descer
A encosta irregular,
Vejo e deixo de ver
Os trilhos que hei de pisar.

Cerro os olhos, pouso a mão
Nos ombros largos do céu.
Resvalo, caio no chão,
Tudo o que tinha partiu.

Grito, maldigo o destino
E a montanha orbicular.
Deixou-me chegar ao cimo
Para depois me empurrar.

Agora no chão tão frio,
Espero que chegue Caronte,
Não para passar o rio,
Mas para subir ao monte.

Maria da Fonte



sábado, 18 de maio de 2013

Ovelha perdida



Pedi a Deus, trouxe-me,
dispersos, laivos de luz, pedaços
de esperança. Um vendaval, eu ainda criança;
uma chuva intensa, os sonhos imersos.
Chamei por Deus, já longe de mim.
Sentei-me à mesa, quis-me confessar.
Ele calado, eu a protestar. Nada mudou.
Não soube ao que vim.
Bati a porta do céu e saí. Caí nas nuvens,
só depois no chão. Deus não me empurrou,
eu juro que não,
fui eu que, zangada, a porta bati.
Entrei na cidade, uma nuvem de pó. As casas sem blush,
as ruas sem luz; os olhos no chão,
os rostos na cruz. Deus longe de mim,
eu ali tão só.

Procurei-o em tudo, em nada o vi. Sentei-me no chão,
à espera, a olhar,
mas ele não veio, eu fiquei ali.
Talvez o encontre quando me encontrar.

Né Fonte
Imagem retirada da internet


sábado, 27 de abril de 2013

O bê-á-bá da cozinha






Ligue atempadamente o dicionário,
Uma vida, nada mais.
Leve a lume brando cada conotação,
Uma textura suave.

Não se apresse nos condimentos,
Estude o mercado.
Os biológicos? Talvez…


Coloque tudo numa folha de papel.
Misture bem,
há de sentir o palpitar da massa.


Deixe levedar na gaveta,
Tem de triplicar o volume.
Depois, só depois, leve ao forno.


Dê os últimos retoques.
Em dias de festa, a receita sai pior.
Bata meia dúzia de metáforas
em castelo e
cubra as impurezas.


Agora sim, pode servir.
Os convidados são como as castanhas,
trazem sempre verão.

Maria da Fonte

sexta-feira, 29 de março de 2013

Alegoria


Cai de imprevisto num qualquer planeta,
Vindo talvez de um asteroide, ou não.
Entra vagarosamente em cada homem
Como quem desce uma caverna imensa.
Colide em rochas maciças de terror,
Desaparece numa sombra suspensa.
Um muro opaco, um silêncio absoluto,
Uma quase inaudível esperança.
Amove a bílis, mergulha novamente.
Uma brecha de luz, um oceano.
Em cada víscera, galerias de corais.
Grande viagem! Sem dúvida, a maior!
Aquela gruta, aquele corpo humano.


Emerge além na derme de arenitos.
Um corpo exíguo, uma alma cheia.
Uma aventura! A maior aventura!
Ser o deserto, dormir num grão de areia.

Né Fonte
Imagem da internet