sexta-feira, 18 de outubro de 2024



Não peço licença

à cobra que me calça

nem lanço palavra

a qualquer borboleta.

 

Não permito o voo leve

da andorinha

com ares de senhora

de quem vai e vem.


Enfada-me a velha

que insiste em ficar

e as crianças que embalam

o bordado de alguém.


Arrelia-me o galo a cacarejar

pelos cantos do vento

sem clave de sol

e sem fado na voz.

 

Não suporto os gatos

pelas pedras do pátio,

nem o bife de vaca

cortado em viés.

 

Cuspo quando sinto

os ossos na boca

sem deslize algum,

ou qualquer pirueta.


Soletro devagar,

haja quem me ouça,

que eu sou o mundo e o mundo é,

sem pedir licença,

a minha silhueta.

 

 

Maria da Fonte


domingo, 13 de outubro de 2024

 



Quando eu morrer, Cecília,

talvez os galos não cantem mais à minha volta,

talvez não haja brisa, nem mãos delicadas,

que já não é moderno,

só pilares de cimento e frases largadas

de valas, pedras, pó, pás

e larvas na boca.

 

Quando eu morrer, Cecília,

não quero as mãos cruzadas no peito,

um sorriso de seda

e um vestido de roda bordado inglês,

antes uma tigela de marmelada na boca

a desafiar as formigas,

um pregão nos olhos

e as mãos soltas

para coçar os pés.

 

 

Quando eu morrer, Cecília,

diz-lhes que não precisam de me medir os quadris

para ajustar o tecido.

Lembra-lhes ainda, Cecília,

(talvez eles não tenham dado por isso)

que eu morri tanta vez

dentro do mesmo vestido.

 

 Maria da Fonte

quarta-feira, 9 de outubro de 2024



Não me cobrem

mais nada.

Perdi os dias para o negócio,

agora deixem-me ver

como se move uma andorinha

no ar.

 

Doravante,

deixem-me ser o ponto mal costurado,

o suspiro amarrotado na lombada,

a palavra despenhada

e o avesso da frase

por saldar.

 

Não precisam

de me falar da jornada

nem de me amparar o gesto retalhado,

basta que me deixem

subir degrau a degrau

a vertigem do sonho

sem lugar.

 

 Maria da Fonte


sexta-feira, 6 de setembro de 2024

 


Toda a gente à romaria

De pandeireta na mão,

Numa chula ritmada

Da Lapa até São João.

 

Já sobem como flechas

Pelas calçadas "apinho"

As vozes esganiçadas

Das raparigas do Minho.

 

Os tocadores expeditos

Largam cantigas furtivas

E confiam nas respostas

Gaiteiras das raparigas.

 

Vai de roda, vai de roda,

Dizem cheios de chieira,

O Lima é nossa haste

A terra a nossa bandeira.

 

Maria da Fonte

 


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 

Quis,

antes de partir,

 que a tela despisse

todo o seu cansaço

e desse um novo rumo

ao rosto despenhado.

 

Alargou as lágrimas

com um traço largo,

pôs árvores

nas margens e,

 

sem nenhum recado,

levantou o vento,

disse adeus aos netos

e desceu de barco

para qualquer lado.


 Maria da Fonte

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

 


Quando a erva daninha me povoa

o pensamento, eu, por ter a folha em branco

e por me querer a cultivar poemas de riso

escancarado,

carrego as minhas inseguranças até ao gesticular

do meu antigo

professor.

 

Depois, fixo o olhar no tal ecossistema.

Procuro os recursos naturais,

como quem colhe as palavras

mais redondas

e segue o roteiro dos sonhos

no regresso à vida.

 

Vejo, então, a utilidade da planta

no deambular do seu indicador.


Maria da Fonte

quarta-feira, 14 de agosto de 2024






 

O teu horizonte era uma mesa a médio prazo

onde sempre te sobrava coração.

Mas a ternura anoiteceu

nos teus lábios,

e as palavras

 definharam ao redor

das tuas asas.


Deixou de haver lugar na tua aragem.


Talvez o teu ângulo do olhar

te tenha abreviado a amplidão.

Maria da Fonte