domingo, 15 de junho de 2025

 



Todas as tardes,

de sapatos gastos,

 descia a ladeira

a buzinar ao vento.

 

E agachada

nas curvas de um gato,

atirava as pernas

e trepava o tempo.

 

 

Nos ramos rijos

de arcos de caça,

 desenhava as horas

e esticava a mão.

 

 

Dizia-as maduras

como ampulhetas

ou tambor de férias,

sem cair ao chão.

 

 

Minha mãe ouvia

e simulava a queda

enquanto estendia

a colher da sopa.

 

 

Eu balbuciava

palavras sem margens

que as horas cabiam…

 

E abria a boca.



Maria da Fonte

domingo, 8 de junho de 2025

 

Pois então não esperem de mim

grande ciência.

Em abono da verdade, este meu compromisso

com a vida,

tantas vezes permeável,

Tantas vezes fugaz,

fez de mim soldado

numa guerra que

sabia

de antemão

perdida.

 

Se é natural

que os dias me escorreguem

das mãos sem o apertar do gatilho?

Talvez.

Como os beijos e as flores,

os moldes e os lugares,

o copo e o vinho.

 

 

Deixem-me, por isso, brindar a este tempo

emprestado, que as taxas de juro

andam pela hora da morte,

e eu quero acreditar

que estou longe,

muito longe,

do destino.


Maria da Fonte

quarta-feira, 9 de abril de 2025

 


O mundo arde

aqui mesmo ao meu lado.

Apesar das advertências,

os homens teimam em plantar

eucaliptos que ocupam pouco a pouco

 o lugar da multidão.

 

E eu, com o olhar desarmado,

procuro urgentemente

uma janela,

mas temo que o vento,

sem comando,

me desarticule

o bater do coração.

 

Maria da Fonte

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 


                                                                                            Talvez a mão esquerda

vá sem jeito

e a direita não seja mais o que era.

 

Talvez uma estrela mais a norte,

ou a norte a luz que entendas seja rara.

  

Talvez o declive do teu braço

seja o acaso ou só delicadeza,

e o tempo que medeia cada traço

seja a brisa que te leva ou te separa.

  

Talvez o engenho, meu amigo,

esteja na arte da saber arredondar

as formas planas do teu dia

no rosto limpo

da pedra lapidar.


Maria da Fonte 


quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

 


 

Ponho sorrisos redondos

nos soldados

como os trocos

que trago lá por casa.

 

E com o fio rasgado da navalha

desprego da parede

o voo raso

e dou sombra latente cada bala.

 

E depois das coisas acabadas,

enrolo a escuridão em espiral,

 

agito os cortinados das janelas,

moldo famílias inteiras com os olhos,

sirvo a ceia

na mesa principal.


Maria da Fonte


 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024



Não peço licença

à cobra que me calça

nem lanço palavra

a qualquer borboleta.

 

Não permito o voo leve

da andorinha

com ares de senhora

de quem vai e vem.


Enfada-me a velha

que insiste em ficar

e as crianças que embalam

o bordado de alguém.


Arrelia-me o galo a cacarejar

pelos cantos do vento

sem clave de sol

e sem fado na voz.

 

Não suporto os gatos

pelas pedras do pátio,

nem o bife de vaca

cortado em viés.

 

Cuspo quando sinto

os ossos na boca

sem deslize algum,

ou qualquer pirueta.


Soletro devagar,

haja quem me ouça,

que eu sou o mundo e o mundo é,

sem pedir licença,

a minha silhueta.

 

 

Maria da Fonte


domingo, 13 de outubro de 2024

 



Quando eu morrer, Cecília,

talvez os galos não cantem mais à minha volta,

talvez não haja brisa, nem mãos delicadas,

que já não é moderno,

só pilares de cimento e frases largadas

de valas, pedras, pó, pás

e larvas na boca.

 

Quando eu morrer, Cecília,

não quero as mãos cruzadas no peito,

um sorriso de seda

e um vestido de roda bordado inglês,

antes uma tigela de marmelada na boca

a desafiar as formigas,

um pregão nos olhos

e as mãos soltas

para coçar os pés.

 

 

Quando eu morrer, Cecília,

diz-lhes que não precisam de me medir os quadris

para ajustar o tecido.

Lembra-lhes ainda, Cecília,

(talvez eles não tenham dado por isso)

que eu morri tanta vez

dentro do mesmo vestido.

 

 Maria da Fonte