sábado, 14 de novembro de 2020

 


Inclina-te sobre os homens que anoitecem,

toma-lhes as mãos das molduras e

segreda-lhes retratos como beijos.

 

Não sacudas, nem levantes as palavras,  

se alguma nuvem solta se afigura.

 

Recolhe o frio calada

e faz o céu que puderes àquela hora.

 

Quando levantas a voz, nada que é teu ganha altura.


Maria da Fonte

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 


Que a tarde foi isolada no perímetro da sombra,

declara-se nas varandas

 luto em primeira mão.

 

Da torre, um relógio atónito

recolhe os dados clínicos,

atualiza o histórico e mede-lhe a pulsação.

 

O quadro é reservado,

batimentos arrastados. Bradicardia, profere.

 

Do outro lado da rua, velhos estáticos como barras

(um metro e meio os sucede)

a fazer lembrar capelas

 

ou gráficos 

confinados às molduras de parede.


domingo, 8 de novembro de 2020

 


Como se enganam os senhores da alta-costura

quando ajustam a gente à etiqueta

e penhoram as ancas no tecido.

 

Chegam sempre de madrugada neste registo.

Trazem no peito a praça e um cabide,

como se fossem poetas

e as mulheres redondilhas

sem lugar a pernas flácidas.

 

Os senhores de alta-costura

engomam versos em série

e gastam as  horas  nisto.

 

Maria da Fonte

Fernando Botero

 

 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

 


Depois de tudo,

servi-me a data

com pompa e circunstância.

 

E ajudai-me a diluir este remorso

de ter esquecido o lugar e a hora exata.

 

Não soube amar os gestos nas fachadas.

Valho-me de retalhos de nuvens,

 supostamente incauta.

 

Nos arredores de mim,

que caia a noite como uma nódoa solta.

 

Maria da Fonte

Imagem retirada da internet

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

 


Se o coração soubesse

que o poema me deixa sem chão,

que os olhos me fogem

e as horas rebolam

sem fauna ou flora.

 

Se o coração soubesse

que os dias me queimam

nas costuras das mãos

e a pele desprende

dos dedos de corda.

 

Se o coração soubesse,

parava-me agora.

 

Maria da Fonte

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

 

Dê palpites sobre a linha,

o padrão e a textura,

o clima, se quiser.

 

Até à última prova,

proteste o ponto corrido,

o decote do vestido

e o forro, quando o tiver.

 

Ponha defeitos em tudo,

a cambraia, a seda pura,

a viscose mal cosida

e o fio curto a prender.

 

Trace o tamanho do pano,

a roda larga ao vestido,

o rodopio do vento

sem uma fibra sequer.

 

Que, ainda que não permita,

há quem num pano de pó

abafe por completo

as pernas de uma mulher.


Maria da Fonte

Imagem retirada da internet

 

 

 

domingo, 30 de agosto de 2020

 



Ainda que o teorema determine

que o cálculo tem por base

 dois princípios cruciais na operação,

há olhos que não encontram a área de uma figura

e cores que se incendeiam

e embatem como facas

nas falhas do coração.

 

Maria da Fonte

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 


Palavras em linha reta

numa estrutura bem simples,

com materiais sustentáveis

e ampla ventilação.

 

Quatro pilares tracejados

a deixar cortar o vento

e uma janela entreaberta

para abreviar o medo

que atravessar a razão.

 

Uma porta desarmada

na moldura habitual

e uma varanda que beba

o disparo de um coração.

 

Fica o projeto em conta

e muito funcional.

 

Maria da Fonte

 

segunda-feira, 27 de julho de 2020




e humedece-me os dedos com que agarro as folhas
e avanço de improviso
pelos socalcos do livro.

Não preciso de me esconder atrás das sombras,
nem de amordaçar o vento que não seguro,

basta que a pressa dos olhos
leve nas mãos os ramos

e deste ângulo do olhar
eu prenda tudo.

Maria da Fonte


segunda-feira, 1 de junho de 2020



Era um quarto num rés do chão
muito acanhado,
de parede em pladur
e piso revestido,
quebrado por uma organza cinza fosco
e o tímido sorriso de um postigo.

Em todos os placares da minha rua,
era um quarto desgarrado
onde imagino
uma janela aberta sobre o peito
e o olhar sem tamanho

do inquilino.

Maria da Fonte


sexta-feira, 29 de maio de 2020



Por um fio de luz
desci pouco afinada.

Nada entendia então de partituras,

nem de acordes maiores às varandas,
em horas paradas
e pautas quase puras.


Na timidez, improvisei um grave,
sem o detalhe preciso da altura.

E nos soluços afinei a voz,
acomodei-me discretamente às cordas,

puxei a medo a linha do horizonte,

reajustei-a depois à tessitura.



Maria da Fonte

Imagem retirada da Internet 


sábado, 9 de maio de 2020







Não sei a que livros roubei

as âncoras   e os abraços, que barco eu desenhei

no orvalho do meu rosto e o que agarrei aos mastros.

 

Não sei que pilhagens fiz e onde ajustei o perigo,

em que margens atraquei, que palavras contornei,

que carga trouxe comigo.

 

Não sei se foram os ventos ou as correntes primeiro,

nem sei se o barco que fiz me deu cadastro sequer

de pirata ou marinheiro.

 






Maria da Fonte

Imagem retirada da Internet

Só pode ser um poema

Lanço ao mar o poema, sem nomear capitão,
sem mapa que amanhe as ondas
e as premissas da razão.

Largo-o em alto-mar, desenho-lhe a aflição.
Dou um bote a cada homem e o esboço de uma rota
 sem nenhuma convenção.


Maria da Fonte
Imagem da Internet

domingo, 3 de maio de 2020

Mãe




Mãe, este desarticular de dedos
que me deixa de braços pendurados
e cálculos agarrados à garganta,

esta sensação de dor que mal descrevo,


este pavor tremendo, mãe, que tenho
de te deixar
as mãos sujas de medo.

Maria da Fonte

sexta-feira, 24 de abril de 2020



Parecia-me tão pequeno o céu
na sombra asseada
do pavimento da pele.

E agora, nas paredes impermeáveis da casa
onde os olhos chegam de longe
e o corpo se coíbe,
eu quase me perco nele.

Maria da Fonte


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020



Mulher é desdobrável.
É verdade, Adélia.
É verdade.

Hoje encontrei umas quantas
amachucadas em cabos de vassouras,
e, quando estiquei a mão
para as recolher,
elas repeliram o gesto.

Arriscavam o tiro certeiro.
Já tinham treinado a união de borboleta
entre a fábrica e o mercado,
 o estendal e o canteiro.

Não era, Adélia. Não era protesto
(tu nunca estiveste enganada),
nem sequer falta de jeito.


É esta forma mansa que elas têm
(penso eu)
de aconchegar a razão junto ao peito
sem que ninguém dê por nada…

Ou de pensarem que assim
chegam mais depressa ao céu.


 Maria da Fonte


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020



Puxa-se o lustro à forma,
cria-se um jeito latente,
molda-se o corpo de retas
e afina-se cada corda
até ao ponto estridente.

Faz-se um herói outra vez,
com outros ingredientes.

Uma embalagem pequena
mais um código de barras,
com um gatilho nas mãos
e balas presas nos dentes.

Maria da Fonte
Imagem da internet



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Na folha pálida
pouso as linhas largas
sem o rigor de tudo o que é suposto,
e de improviso deixo cair os traços,
como se fossem riscos em cascata
ou rugas soltas pendentes do teu rosto.

Depois, avó, entorno as tintas todas
na mancha branca que ainda me couber,
puxo o teu cheiro manso com as mãos,
procuro avidamente a tua voz
e abro uma frincha de luz
para te ver.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Como uma pedra encalhada



Permite-me que eu me demore
em cada hora uma vida.
Que as palavras barricadas
entre vírgulas e gavetas
deixem a sombra crescer
como uma pedra encalhada
nas âmbulas de uma ampulheta.

Deixa-me ter a ilusão
de que posso seguir sem rumo
pela passagem estreita
de uma moldura fechada,
num fio que cai a prumo.

Maria Fonte