domingo, 22 de novembro de 2015

Abóbora- menina



APPACDM DE SETÚBAL

Empurro a noite para longe do meu quarto,
pouso o olhar no parapeito da janela,

invento uma abóbora-menina
a correr no meu jardim.
Corro com ela.

Chamo bem alto o nome não sei de quem,
tiro da gaveta um guache e um pincel.

Enquanto penso ou sonho, não sei bem,
semeio mais abóboras no papel.

Uma ao centro, virada para mim,
outra ao cimo, mais abaixo, mais além…

Tão coradas!
Tão redondas!
São, assim, tal e qual o ventre de minha mãe!


Mas eis que a porta se abre e tudo voa,
a folha cai no chão amarrotada
e o estrondo do meu sonho em vão ressoa.


E se a abóbora redondinha for quadrada?


Maria da Fonte

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

No meu bairro


No meu bairro
há uma rua sem saída
onde as palavras
fazem sempre ricochete.
Nas portas,
pintam formas esbatidas.
Nas janelas,
moldam memórias de gente.

O mundo do meu bairro
é só de fora,
desprende-se airosamente
dos sentidos.
E o tempo vai vertendo
hora a hora
sobre a pele dos meus dedos
ressequidos.

Se morro, no meu bairro,
ninguém vê,
porque tudo, no meu bairro,
faz sentido.
O mundo do meu bairro
é bem maior,
e o tempo do meu bairro,
mais comprido.

Maria da Fonte
Imagem da internet

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A mão que te estendi

Levas tanta pressa nos olhos
e tanta ausência nos gestos.

Recusas soletrar as coisas a que pertences,
hipotecas aquilo que te dão.

E porque a noite chegou,
julgas saber o caminho de regresso.

Em que ângulo do olhar deixaste o coração?

Maria da Fonte

quinta-feira, 7 de maio de 2015

A uma das tantas tias que conheço.



Porque deixou a jeito o seu casaco
Do mais puro grife que há no mercado,
Olhei-o de viés, maravilhado.
Que medonho!
(Eu afagava a mancha do sovaco.)

Montanhas de graça, e ela ria
Vertiginosamente do pobrezinho.
Gesticulava, indignada, a outra tia.
(E eu escondia, irado, o colarinho.)

Tinha vinte anos, garanto. Que beleza!
Talvez fosse ela da tal porcelana
Que minha mãe sonhava em pôr na mesa.
(E eu que só queria amor e uma cabana.)

As calças repuxadas ao umbigo,
Nem vestígios de miolo na cintura.
Imaginei um banquete e um abrigo.
(E eu…que dentes! de tanta côdea dura.)

Ouvi, por certo, chamar-me seu criado,
Lábios carnudos e sons bem guturais.
Crescia em mim um frio tresloucado.
(E eu… tão pouca roupa, ou corpo a mais.)

Sem mais demora, estendi-me ali no chão,
Fiz-me criado em mesa de jantar.
Ela trincava a côdea do meu pão.
(E eu, a medo, sugava o caviar.)

Chamou-me possidónio, eu sorri,
Por não saber ao certo o que dizia.
Talvez fosse a ementa que trazia.
(E eu pensava no prato que comi)

Milho transgénico, não era. Ela que diga
Como era boa a côdea que lhe dei.
Já o caviar, ai tia de uma figa!
(Eu não morri, mas bem morto fiquei.)

Maria da Fonte

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Contornos


Entoas cantos
de um deus desarrumado.
Vais embalando
na solidão das horas.
E o céu remexe os dias que te habitam
como quem entra na casa onde moras.

A noite dorme secreta
nos teus passos.
A lua ao fundo,
suspensa na altura,
vai devolvendo à sombra do teu rasto
o mistério nas formas que procuras.

E onde o mundo acaba,
o céu começa.
Nada te prende ao chão
que tu seguras.
O circuito das coisas recomeça
entre o teu rosto e o espelho onde figuras.

Maria da Fonte
Imagem da Internet

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Havemos de morrer mais adiante




Se a noite cai nos corpos seminus,
a lua ergue-se em nós como um pilar.


E num misto de feitiço, eu e tu
subimos entre a noite e o luar.


A bruma desce, rega em nós o prado,
e outro céu mais alto se levanta.


Neste avançar um barco se anuncia.
Há horizonte num mar que se agiganta.

Seguimos obstinados a maresia,
fechados na moldura do instante.


Brindamos cada onda até ser dia.
Havemos de morrer…. mais adiante.

Maria da Fonte
Imagem retirada da internet


domingo, 18 de janeiro de 2015


Desce devagar
a sombra do poema.
Não te quedes nas ondas geladas
do meu corpo,
onde não há senão
a impressão temporária do meu nome.

Senta-te demoradamente
em cada verso
e deixa-te esperar
pelo sacudir das madrugadas.
Talvez as palavras
se rasguem nessa espera
e tu possas colher
no olhar as linhas do teu rosto.

Não chames o meu nome
em parte alguma.
Entre o vacilar das letras,
adormeço.
Recolhe-as transparentes,
uma a uma.
Dá-lhes a alma,
um nome, um endereço.

Maria da Fonte
Destino': A Salvador Dali and Walt Disney