sexta-feira, 27 de dezembro de 2013


Uma noite sem portas, sem janelas,
Erguida de silêncio e pouco mais;
Entre as fendas das coisas pequenas
E as fragas viscosas do cais.

O gemido sufocante de um rio,
Uma lua desgrenhada no leito,
A leveza de um corpo esguio
Sobre o sopro de um dia desfeito.

E ao cimo das nuvens, estrelas,
Nem sempre tocáveis do chão.
Uns já nasceram sem braços,
Outro não estendem a mão.



Maria da Fonte
Imagem retirada da Internet

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Recados a minha mãe

Recados a Minha Mãe

Deram-te uma folha em branco e um lápis
da cor do céu, uma vida transparente
que o teu olhar coloriu.
Primeiro, uma casa grande, onde
pudesses sonhar. Depois,
um berço dourado e alguém
a quem embalar.
Era para ser um anjo aconchegado
nos braços, mas, do chão até ao céu,
alguém te trocou os passos.
E tu ficaste tão triste. Choraste, eu sei,
é assim. Mas da rudeza das pedras
pode fazer-se cetim.

Pintaste outro caminho, mais longo,
muito mais largo, e lá seguimos os dois
pela vida, lado a lado.

Mãe, só tu me sabes pintar
assim tão perto do céu.
Eu digo que sou um anjo,
tu pedes que seja eu.

Maria da Fonte

domingo, 17 de novembro de 2013

XVIII Concurso APPACDM de Setúbal

Palavras sem alma



São tantas as palavras que me atiras: decretos
despachos, portarias…Pesam tanto nas pernas arqueadas,
talvez por serem vagas, tão vazias.
Nos passeios estreitos que me levam, não cabem
palavras iguais. Os passeios são de pedras genuínas;
as palavras, penhascos surreais .
Porque trazem o peso do universo, são enormes,
mais pesadas que o meu chão. Sufocam astutamente
o meu silêncio. São imensas, monstruosas, e eu não.

Rasga as folhas escritas, não me esqueças nas entrelinhas
das frases espectrais. De que servem as palavras sem entranhas,
tão vazias, tão enfermas, tão banais?

Melhor o teu olhar, a tua mão, e o caminho
pode ser o que quiser, basta que caminhes a meu lado,
que tu sejas e que me deixes ser.
E chegados ao leito do rio que nos leva, onde tudo
o que foi já não é mais, tu davas-me um pincel
e eu pintava as sombras das almas iguais.

Menção Honrosa
Maria da Fonte


segunda-feira, 28 de outubro de 2013


«Los hombres vivimos juntos,
pero cada uno se muere solo
y la muerte es la suprema soledad.»
Miguel de Unamuno

Atropelas os corpos
Como se quisesses encarcerar as almas.
Desconheces que a porta de qualquer morada
É revestida de um rosto blindado.
Convences-te de que entre o átrio e o templo
Há o espaço de uma corrente de ar.
Aguardas impacientemente a ordem.
O santuário fica, porém, à distância de uma vida.
Enquanto isso, sonhas-te Deus em altares profanados.

Até onde te levam os braços de Menorá?
Onde te deixam os teus?

Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Coisas do quotidiano



O dia fechou a porta simplesmente no trinco, a noite entrou e delineou nas paredes os contornos indefinidos da vida. Ao fundo os sonhos encapelados deixavam tocar as estrelas e fecundar a lua.
Só a névoa leitosa começava a trepar mansamente a encosta e os dias iam-se afogando paulatinamente.
No lusco-fusco da casa, ouvia-se a voz soluçante e áspera do destino.
Desejou arduamente elevar-se no espaço, fugir para além do cenário opressivo das imensas cordilheiras de silêncio que a cercavam, subir ao topo mais alto da vida e sentir
o ar cristalino e cortante da sorte.

Maria da Fonte

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Revés




Os livros não gostavam do seu quarto,
talvez temessem as águas turvas das linhas da mão
ou os trilhos calejados dos montes.
Nunca partilhara o travesseiro de palha com as letras.
Sabia que o pai não suportava o feixe de pernas dos irmãos
e as letras também tinham pernas.

Pudesse ao menos dividir o silêncio
com uma dezena de palavras e erguer na piedosa noite
a sua aldeia, voar por entre as frinchas dos lençóis,
estender o desejo nas nuvens e dormitar ao lado
das estrelas!

Acordava, porém, de madrugada com o bafo
aterrador da noite.
As paredes do sonho demoliam,
as palavras morriam uma a uma,
as lágrimas engoliam a aldeia
e as pálpebras abafavam a dor.



Caía de rompante nos lençóis e voltava a levantar
a primeira pedra.
Pediu um passaporte para o céu,
nunca lhe trouxeram o visto.
Olhava obstinado a fronteira da sorte
e perguntava-se:
como se abrem as portas ao sonho?


Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Para lá dos muros



Se quiseres saber onde moro,
Não tacteies o corpo dissoluto das pedras,
Não devasses a paciência do olhar na nébula geográfica
Das cidades imponentes,
Procura-me antes nas margens do poema,
Onde as palavras ditam a desordem
Dos subúrbios e as ideias mendigam um pedaço de paz.

Maria da Fonte

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Travessia



Subo e desço a montanha
Pelos trilhos do incerto.
No topo fico tamanha,
Só no sopé eu desperto.

Neste subir e descer
A encosta irregular,
Vejo e deixo de ver
Os trilhos que hei de pisar.

Cerro os olhos, pouso a mão
Nos ombros largos do céu.
Resvalo, caio no chão,
Tudo o que tinha partiu.

Grito, maldigo o destino
E a montanha orbicular.
Deixou-me chegar ao cimo
Para depois me empurrar.

Agora no chão tão frio,
Espero que chegue Caronte,
Não para passar o rio,
Mas para subir ao monte.

Maria da Fonte



sábado, 18 de maio de 2013

Ovelha perdida



Pedi a Deus, trouxe-me,
dispersos, laivos de luz, pedaços
de esperança. Um vendaval, eu ainda criança;
uma chuva intensa, os sonhos imersos.
Chamei por Deus, já longe de mim.
Sentei-me à mesa, quis-me confessar.
Ele calado, eu a protestar. Nada mudou.
Não soube ao que vim.
Bati a porta do céu e saí. Caí nas nuvens,
só depois no chão. Deus não me empurrou,
eu juro que não,
fui eu que, zangada, a porta bati.
Entrei na cidade, uma nuvem de pó. As casas sem blush,
as ruas sem luz; os olhos no chão,
os rostos na cruz. Deus longe de mim,
eu ali tão só.

Procurei-o em tudo, em nada o vi. Sentei-me no chão,
à espera, a olhar,
mas ele não veio, eu fiquei ali.
Talvez o encontre quando me encontrar.

Né Fonte
Imagem retirada da internet


sábado, 27 de abril de 2013

O bê-á-bá da cozinha






Ligue atempadamente o dicionário,
Uma vida, nada mais.
Leve a lume brando cada conotação,
Uma textura suave.

Não se apresse nos condimentos,
Estude o mercado.
Os biológicos? Talvez…


Coloque tudo numa folha de papel.
Misture bem,
há de sentir o palpitar da massa.


Deixe levedar na gaveta,
Tem de triplicar o volume.
Depois, só depois, leve ao forno.


Dê os últimos retoques.
Em dias de festa, a receita sai pior.
Bata meia dúzia de metáforas
em castelo e
cubra as impurezas.


Agora sim, pode servir.
Os convidados são como as castanhas,
trazem sempre verão.

Maria da Fonte

sexta-feira, 29 de março de 2013

Alegoria


Cai de imprevisto num qualquer planeta,
Vindo talvez de um asteroide, ou não.
Entra vagarosamente em cada homem
Como quem desce uma caverna imensa.
Colide em rochas maciças de terror,
Desaparece numa sombra suspensa.
Um muro opaco, um silêncio absoluto,
Uma quase inaudível esperança.
Amove a bílis, mergulha novamente.
Uma brecha de luz, um oceano.
Em cada víscera, galerias de corais.
Grande viagem! Sem dúvida, a maior!
Aquela gruta, aquele corpo humano.


Emerge além na derme de arenitos.
Um corpo exíguo, uma alma cheia.
Uma aventura! A maior aventura!
Ser o deserto, dormir num grão de areia.

Né Fonte
Imagem da internet

domingo, 24 de março de 2013

Do lado de lá das pedras


Cercaram-lhe as ideias
num assalto.
Ficou refém de um sem-número de ilusões.
Estenderam-lhe o corpo no asfalto, deceparam-lhe
lentamente as sensações.
Teve medo, muito medo, do momento.
O poeta a soçobrar ali, no chão.
O corpo cativo, ele entende e aguenta,
o sonho nunca morre.
Não o matem! Não o matem! Não!

Olharam de soslaio o seu desígnio, e,
em jeito de malvadez ou zombaria,
arrancaram-lhe dos braços aquele sonho,
como quem rouba ao céu a fantasia.
Depois, dois tiros certeiros, e salpicou
de vermelho carmim a poesia. Morreu, eu sei.
Mas que lhe importa a morte,
se uma só vida lhe trouxe tantas vidas?

Será para sempre o outro lado, como se o corpo
se elevasse ao infinito, ou a longínqua viagem
do seu eco fosse a sombra interminável do seu grito.


Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

segunda-feira, 18 de março de 2013

Artesão de sonhos



Era um homem velho, artesão de sonhos,
Aquele que eu via no largo da aldeia.
Como eu gostava de o ver chegar
Envolto em trapos feitos de memórias.
Um corpo esguio, esculpido pela fome,
Um saco vazio, tão cheio de histórias.

Eu sentava ali, bem perto do chão,
Enquanto ele olhava tão sofregamente.
Tirava do bolso um naco de pão,
Depois, só depois, voava no céu.
Sem pasta, sem livros, que bem ele lia
Os meus olhos negros trazidos de casa.

Então, eu subia, subia, subia 
Ao cimo das nuvens, tal anjo da guarda.
Um grande cordel, e o velho guiava,
Do pico das pedras, o sonho no céu.
E o velho sabia, mas nunca me disse,
Que o sonho que tinha ele é que mo deu.


Se o sol aquecia as asas de mais,
O velho puxava com força brutal.
O fio cedia àquela vontade,
Eu voava ilesa por entre os pardais.
Depois, mais um voo, pousava no chão,
O velho ali estava à espera de mim.


Eu olhava-o triste, de regresso a casa,
E ele sabia que estava no fim.
Mas nunca me disse para onde ele ia,
Talvez não quisesse que o sonho partisse.
Eu esperei, esperei, sentada no chão.
Nunca mais voei desde aquele dia.



Então eu dormi tão profundamente,
Enrolada nas pedras, tão triste, tão só.
Sonhei que fiquei com o fio na mão.
Minha mãe apontou-me uma estrela cadente.
Eu puxei, puxei, o velho não veio.
Chamei-o tão alto, disseram-me não.


E logo eu gritei de novo outra vez:
-Trago para ti um naco de pão.
Vem cá, quero ver-te, levar-te comigo,
Guardar-te bem dentro do meu coração.
O velho não veio, olhei aturdida,
Do cimo do sonho, o fundo da vida.
E os meus olhos negros, prostrados no chão,
Viram tantos velhos caídos em vão.

Maria da Fonte
Imagem retirada da Internet

terça-feira, 12 de março de 2013



Os poemas gostavam de voltar.
Pousavam no cume das ideias e desciam
vagarosamente ao sopé.

Depois, esporadicamente, paravam;
temperavam as entrelinhas com o sabor das terras,
deixavam pelos caminhos um rasto adocicado a fantasia.

Eu ficava ali agachada nas pedras,
à espera de um pedaço de ilusão.
Havia fome no tempo dos meus pais.

Nas entranhas da serra, os nichos de palavras
aninhavam-se como pedintes;
esgravatavam o chão num gesto martelado e corriqueiro.

E eu ficava ali à espera de ver nascer
do ventre da terra um poema.
Queria tanto que a terra fosse redonda como a minha mãe.

Só então levantava a cabeça em profundo desalento.
Olhava o pico das nuvens e sonhava
que a minha aldeia era um livro.

Minha mãe puxava-me pela mão.
Os poemas ficavam para lá da vida
e o horizonte era o lado negro da sorte.
Maria da Fonte
Imagem retirada da Internet

terça-feira, 5 de março de 2013

Enganaram-se



Se um dia vires por aí
A pílula que cure o medo, não hesites.
Temo que ele me mate brevemente. Metastizou-se
À velocidade da luz.
Há dias em que mal seguro a dor. O medo atravessa-me a medula,
Emerge à superfície em ferida;
A lava escorre e as cinzas roçam a morte.
Já levo comigo um sem-número de dentes cravados nos ossos,
Receio que não chegues a tempo de sensibilizar as larvas.

Perguntam-me os médicos o que como, o que corro, o que durmo.
Eu deixo cair um fio de voz assustada:
Tenho medo.
Depois entopem-me outra vez de remédios.
Este é para o dia; esse, para a noite; aquele, para a dor…
Regresso a casa com o cadáver debaixo do braço aos saltos.
Sento-me de frente para mim,
Tiro a bula da caixa e procuro nos diferentes compostos
A percentagem de inocência. Nada!
Químicos! Químicos! Químicos!
Fecho a caixa, inconsolável.
Enganaram-se!


Maria da Fonte
Imagem retirada da internet


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Renovação



(...)
Mas a quem interessaria tão trivial episódio? Agora, visto pela fenda do tempo, a anos de distância, até ela ria copiosamente cada vez que a brisa quente da tarde lhe servia mais uma lembrança. Tinha que as gravar na folha que depositara no colo. Era um compromisso que havia assumido e ela não era mulher de faltar às suas obrigações. Mas um romance qualquer, não. Não suportava os reflexos do rosa cálido que todas as histórias de amor envergavam como se fossem vestidos de verdade. Ela sabia que no amor todas as cores coabitavam, cada uma tinha o seu tempo de brilhar. Essa coisa de o rosa se sobrepor anos a fio era muito discutível. Recusava-se a falar do seu amor à sombra de um raio de ilusão tão ofuscante e tão apaixonado. E eu, caríssimo leitor, sem o querer desiludir, não é de facto essa a minha pretensão, chego a dar comigo a acenar a cabeça em sinal de consentimento. Iluda-se quem pensa que o amor é eterno! Não se enfureça, companheiro. Nem ouse abandonar a carruagem e deixar-me aqui a falar com os botões. Mas, francamente, uma das qualidades que ainda me resta é a frontalidade. Só uma?! Acha pouco? Bem, eu até tinha muitas mais. Vá, para falar a verdade, duas e meia. Foram penhoradas…É uma história que, digo-lhe, dava pano para mangas. Nem queira saber. O melhor mesmo é voltar novamente à primeira. Espere! Parece que perdi o fio à meada… Engana-se! Vem-me agora com essa coisa das prolepses. Essa agora, eu lá pretendo ser protagonista desta história. Que disparate! É ela, a tal senhora que encontrei na rocha (lembra-se?), de memória em riste e lápis afiado. Essa, sim. Ficou de registar na folha que o neto lhe havia oferecido todos os passos coloridos que dera em direção ao altar.
(...)
Maria da Fonte
Este excerto faz parte de um conto, da minha autoria, que integra uma coletânea.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Mea culpa













Não desesperem, amigos. Lembrem-se sempre daquele famoso limpa-vias que enchia a barriga à família com o arroz vindo do céu. Eu ainda tenho esperança de que algum político deixe cair da mesa um ou outro grão de arroz. Os restos? Já lhes perdi o tino ( ainda trago comigo a singeleza do sapateiro pobre…), podem ter cães em casa e esses ladram, eu não sei ladrar. Já dei comigo nas ruas à procura de alguém que me ensinasse, mas anda tudo tão calado. Não sei se é da minha barriga, que é demasiado grande, ou se são os outros que não têm barriga.
Mea culpa, ter a ousadia de também me sentir gente, de sonhar mais alto que o limpa-vias, de querer o mesmo céu que os políticos do meu país. Eles até são generosos, vão-me dando o chão da sua mesa.

Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Palavras à discrição



Perco as palavras da mão,
Que caem do pensamento.
Umas partem-se no chão,
Outras fogem-me no vento.

Não desespero, porém,
Porque mais outras virão.
Só quem não lê nunca tem
Palavras à discrição.




Umas são ninhos de penas,
Onde adormeço sonhando.
Em noites longas, serenas,
Partem comigo em bando.

Outras são nuvens de pó,
Sem formas, brilho ou cor.
Cercam-me, deixam-me só,
Estonteada de dor.

Voltam depois novamente,
Como quem pede perdão.
Saltam nos dentes da gente
Em alegre agitação.

Contam-me casos de amor,
Que só os livros conhecem.
Rio, morro de pavor,
Amo heróis que nunca esquecem.

Dão-me jóias divinais
E vestidos de princesa.
Colhem sonhos em beirais,
Põem-me sonhos na mesa.

Com elas, eu corro mundo,
Atravesso a dor da vida.
A Terra fica sem fundo,
A chegada, sem partida.

Maria da Fonte
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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013