quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Siga em frente












Olhe atentamente o mapa dos sentidos,
Contorne as incertezas, siga em frente.
Vai encontrar já longe um cruzamento
Feito de um norte ambivalente.
Se seguir pela direita, fica perto
Da entrada e saída habitual.
Não há serra, não há mar,não há deserto,
É tudo sempre assim…muito igual.
Se seguir pela esquerda, há precipícios,
Onde corpo pode sempre resvalar;
Certezas de grandezas,ou resquícios,
Mas há reptos, há perder e há ganhar.

Depois, uma avenida de grande porte
Que todas as direções hão de cruzar,
Vem da vida e segue em frente até à morte.
Essa mesmo! Não tem nada que enganar.

Respire fundo! Está em hora de ponta.
Vá com calma! Não há pressa de chegar.
O caminho ficará por sua conta,
Só uma vez… sem direito a voltar.

Maria da Fonte
Imagem da internet

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Trapezista



















Entre as brechas da noite,
Equilibro a vida num malabarismo quase que mortal.
Arrasto amedrontadamente os pés pela tímida linha do destino,
Esgueiro o corpo por entre as garras devassas da luz,
Aninho o medo em covis suspensos no terror das horas,
Espreito apavorada o salto fatal.

As feras farejam a minha pequenez,
Cospem, inebriadas, o horror do meu rosto,
Degustam o cansaço que me deixa pendente,
Decapitam-me a confiança com instinto animal,
Arrancam-me da alma a forma de gente.

E eu quero a noite negra, num silêncio imenso,
Onde nada é verdade e eu sou uma miragem,
Para lá do que vejo, para lá do que penso...
Descolar deste brilho tão falaz, tão selvagem,
Sair como entrei, nua… sem bagagem…

Maria da Fonte
Imagem retirada da internet

domingo, 11 de novembro de 2012

MOLDURA


MENÇÃO HONROSA NO CONCURSO LITERÁRIO APPACDM DE SETÚBAL









Minha mãe carregava-me no ventre,
meu pai dava os últimos retoques na quadro de família.
Eu cheguei, surpreendentemente, diferente.
Tive medo, muito medo, que aquele sonho
não coubesse na moldura.
Mas… quem lhe disse que eram essas as medidas?

O bom artesão não lastima a obra imperfeita,
antes a adorna, para que, também ela,
se torne um paradigma.
Meu pai ainda há de ser um célebre mestre
e eu uma obra-prima.

Minha mãe amparava-me do chão,
meu pai pintava-me mais acima.

Maria da Fonte

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ganhar balanço e sonhar



LUA DE MARFIM
Ainda não tinham aberto as portas da fábrica e já ela olhava de soslaio o relógio. Tinha pressa de chegar. Sabia que para lá daquele arsenal de máquinas de costura havia uma ínfima fenda de luz por onde diariamente espreitava a vida.
Quando alguém procurava fazer chacota desta sua inquietação, firmava-se nas pontas dos pés e atirava obstinadamente todos os argumentos que trazia em defesa da sua causa.
O toque de saída mesclava-se à respiração ofegante que a rapidez dos passos lhe exigia. Não havia tempo a perder, às seis horas em ponto começava a sua novela preferida. Ela só tinha que abrir a porta de entrada, descalçar os sapatos, subir as escadas a correr, abrir a janela, puxar uma cadeira e pronto, começava o quadragésimo sétimo episódio. Pena era que o som não desse para regular e que por vezes a voz dos atores se tornasse praticamente impercetível. Não fosse a sua imensa imaginação e perdia-se ali metade do enredo.
Do outro lado da rua desenhava-se uma extensa parede branca recortada por pequenas janelas salpicadas de magníficos heróis. Era vê-los de sorriso em riste a cumprimentar os pequenos transeuntes que deles se abeiravam. O jardim tornava-se desmesuradamente acanhado para albergar tanta gente.
De repente via-se emergir do lado direito da rua um novelo branco de cabelos desalinhados pela brisa que se fazia sentir. Era ele, ela tinha a certeza que era ele. Foram tantos os dias em que do cimo da janela ficara a contemplar aquele arrastar de passos embrulhado num inexplicável mas inquestionável charme. Talvez ela até fosse capaz de o explicar, tinha dúvidas é que do alto de tanto egoísmo houvesse alguém disposto a dar ouvidos a uma tonta. Que interesse poderia ter um pobre velho? Só mesmo ela para despejar impiedosamente as horas naquelas futilidades.
«Está a chegar, tem calma. Eu vi-o por trás da janela da sala doze. Não desesperes…» -Perdia-se nestes pequenos monólogos, que, na sua opinião, serviam como uma espécie de indicação cénica para orientar o ator. E ele, fosse por telepatia ou qualquer outra espécie de comunicação, acatava as ordens vindas de cima. Olhava para a esquerda, olhava para a direita, na procura do banco mais próximo, e assentava ali, no conforto da esperança, todo o seu desassossego. Subitamente esticava o pescoço e o vento encarregava-se de levar até à janela as suas enternecedoras palavras:
- Então, meu menino, como te correu hoje a vida?
Olhava fixamente o neto à espera de ver nos seus pequenos olhos a resposta que tanto desejava. O mundo do avô cabia inteiro naqueles dois berlindes de safira. E o neto sabia disso, deixava sempre tudo muito arrumado para que o avô se pudesse aconchegar à vontade.
- Mal, avô, muito mal. Não soube responder. Era tão difícil! Mas eu também nunca tinha visto desses sonhos grandes, muito grandes, onde se pode meter tudo… parecidos com a mala da mãe. E a professora disse que eu tinha que fazer um texto novo. Avô, és capaz de me ajudar?
O avô, comovido até à medula, deixava escapar um sorriso ungido de meia dúzia de palavras simples. Olhava do alto da sua experiência a ingenuidade do neto e dizia:
- Claro que sim. Havemos de conseguir meter a vida inteira num sonho, só temos que dobrar tudo muito bem, como faz a tua mãe.
E, de mãos dadas, seguiam rua fora: o neto confiante na palavra do avô e o avô convencido de que a deusa dos poetas não ousaria profanar aquela expectativa.
De longe, já muito longe, chegava ainda um suave trautear que teimava em pousar no peitoril da janela para depois ganhar balanço e sonhar:

A vida cabe no sonho,
Se o sonho couber na vida.
Sou eu que ponho e disponho
Da entrada e da saída.


Manuela Ferreira


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O resto é nada



Que artista tão singular te desenhou?
Que olhar tão absorto te domina?
Da Vinci, se bem lembro, ainda tentou…
Há trejeitos em ti de uma obra-prima.




Não! Uma só mão não pode dar-te o céu
Onde adormece o teu sonho encantado.
Há muito mais em ti que esse véu
Que cobre a luz do teu olhar estrelado.


E tu chegaste à tela dos pintores,
Mas foste além daquilo que se via.
Em ti há cor por trás das outras cores,
Há arte sombreada em poesia.


Tu és a alma que o criador recorta.
O corpo, ao génio, é tela trivial.
O resto é nada…nada mais importa.
Tu és só tu… DIFERENTE…ESPECIAL.

Maria da Fonte
Imagem da Internet

sábado, 3 de novembro de 2012

Desacerto





Fotografei-te o olhar
cambaleante,
a baloiçar nas pálpebras
envergonhadas.
Atirei-te o meu amor,
já tão errante,
feito de veredas
magoadas.



Eu pude ver o mundo
em ti vazado,
ao longo
desse teu longo olhar.
E eu cabia inteira
em cada córnea.
Era a terra profanada
a levitar .

Mas o chão ficou pesado,
eu cansada.
Quis quebrar o meu feitiço,
ver-te com calma,
fotografar-te o olhar
por trás da alma…
A imagem saía sempre
desfocada.



Maria da Fonte
Imagem da internet