segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Descolar da miséria



Facilmente se emocionava com o infortúnio alheio, chegava mesmo a verter algumas lágrimas quando alguém lhe trazia uma história mais comovente. Todos os habitantes podiam contar com ele. Nenhuma história macabra caía no esquecimento. A vida jamais se tornaria um monólogo, havia sempre o intercalar de um «Ai Jesus!», num linguajar corriqueiro que lhe trazia mais sentimento à causa.
Regressava a casa e, já no conforto do seu ninho, começava a reconstruir as histórias e a salpicá-las com uma pitada de sal para que não lhes faltasse aquele pavoroso sabor que sempre abre o apetite aos enjoados da vida. A desgraça dos outros não o incomodava minimamente, até lhe trazia algum alento. Foram várias as vezes que o ouvi dizer: «Gosto de estar entre os pobres para me sentir mais rico.».
As tragédias de rua davam lugar às mais ousadas e arrojadas comédias: «Não têm comida em casa! Até parece que eu tenho na minha. Que horror! Aquele cheiro nauseabundo da cozinha enoja-me. Tenho ali umas bolachas integrais e chegam-me, de resto é no restaurante. Dizem que não podem. Francamente! Também não podem ir ao ginásio. Fica ela por ela!». A família contorcia-se com o sentido de humor do patriarca. Aquilo é que era um homem versátil. Só mesmo ele para agradar a gregos e a troianos.
Na rua, chorava compulsivamente. Sabia que do alto da tribuna tinha que manter a prudência. Não podia, sob pena de cair desconcertado no chão, sacudir os que lhe amparavam o pódio. Melhor era, debaixo de um olhar envergonhado, adotar um timbre de voz mais agudo e trémulo, embalar as formigas no seu canto. Só assim, a compaixão de um homem pode ganhar asas e descolar da miséria.

Maria da Fonte

1 comentário:

  1. Agradar a gregos e a troianos, ninguém o faz eternamente...
    Muito bom este texto!

    Beijinhos
    Sónia

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