quarta-feira, 11 de julho de 2012

Depois do homem



A mudez da noite pregava-lhe o último golpe. Logo naquele dia em que ele, recostado ao parapeito da janela do quarto, arranjava alguma paciência para, no silêncio sepulcral das trevas, prestar contas a um deus qualquer. Na correria do tempo e na azáfama do percurso, escassos eram os momentos que tinha para meditar mais a sério. Confinava os pés ao ciscar de ganâncias fortuitas. Sempre cabisbaixo, não fossem as ambições, peadas à leveza dos sonhos, fintar-lhe os desejos e arrastá-lo para ensejos triviais, desenxabidos, onde a metamorfose se reduz a rotinas insípidas e sem qualquer espécie de lucro.
Os dias foram, apressadamente, corridos. Não podia perder uma nesga de tempo a contemplar a futilidade das coisas pequenas que ali haviam sido colocadas propositadamente. O mundo era muito mais que uma árvore, uma flor, uma pedra, um lago, um bicho… era o palco de grandes atuações, onde nunca se deixara impressionar pelo cenário.
Agora dispunha de parcos segundos para despir o olhar obstinado que o conduzira até aqui e vestir-se de um mundo mais leve. Não fosse uma dor aguda atravessar-lhe abusivamente o corpo e ele tê-lo-ia feito. Estava disposto a consultar o saldo da vida e a reajustar a diferença. Queria debruçar o olhar sobre o passado e sacudir as lembranças, mas o peso do corpo começava a aquietar-se ao compasso ritmado dos homens que o levavam.
Tantas vezes havia cruzado o caminho e hoje não o reconhecia. Atrás, como uma orquestra afinada, a turba entoava soluços e choros cadenciados pela dor. Uns vociferavam aos céus tamanha injustiça, outros encolhiam-se no silêncio, como se temessem, também eles, ser descobertos por um qualquer criador e forçados a partir sem sequer um adeus.
O caminho, outrora ágil e ameno, tornava-se agora longínquo e sinuoso. Ele temia o seu fim. A ideia de ser deixado na última estação aterrava-o. Como poderia ele, num corpo madraço, enfrentar os contratempos da jornada? O frio do chão gelado e a sombra das noites negras intimidavam-lhe a alma. Não estava, de todo, preparado para seguir viagem, até porque deixara por acertar tantas contas, tantas histórias a meio, tantas pedras por carregar no caminho. Não podia partir, sabia que não podia, mas as mãos do juízo final arrastavam-lhe o corpo retesado, minado pela gula de vermes famintos. Sentia a carne a despregar-se dos ossos, como se uma larva colossal se tivesse apoderado da sua ténue esperança e assolasse impiedosamente o seu corpo exangue, ostentando nas garras o banquete universal. O seu hálito nauseabundo minava-lhe o corpo e intoxicava-lhe a alma. O pranto da multidão, mesclado ao chilrear dos pássaros, ao crepitar das árvores, ao rugir das bestas, ao bramir dos homens, amedrontava-o e sepultava ali a última resignação que em si havia para presidir majestosamente ao seu funeral. A alma exigia descanso e um caminho perene que lhe permitisse curvar a consciência sobre o seu julgamento e acatar solenemente a sentença. Emborcada num corpo inerte, procurava delongar a condenação, prolongando o trilho final. E ele desejava, mais que tudo, um caminhar permanente, um colo quente onde pudesse iludir a frigidez do corpo. Suspeitava que para lá do chão que pisava, dos mares, dos planetas, da matéria, habitava o vazio, o imenso nada onde se atracam os corpos.
Nesta amálgama de terrores, vinha-lhe à memória, numa espécie de viagem ultrassónica, todos os passos que percorrera num tempo que se dizia seu. Questionava, indignadamente, a ausência de pegadas. Afinal todo o passado, que se pensava substância, nada mais era do que uma lufada de sonhos assentes em coisa nenhuma. E a sua memória, talvez menos desperta do que a de Brás Cubas, limitava-se a trazer à superfície pequenos retalhos da vida.
Desta viagem só sobrava ele, o único alicerce de um castelo que euforicamente construíra e que agora se desmoronava como uma nuvem de pó, onde os vermes entusiasticamente proliferavam, edificando vidas paralelas. Restava-lhe, como única certeza, o dever de devolver à terra o corpo que nunca lhe pertencera. Presentear, ainda que amargamente, os vermes com o seu cadáver, por serem tão dignos da vida como ele. Deixar, enfim, a alma seguir…

Texto: Maria da Fonte
Este texto integra a cletânea «Ocultos Buracos»


10 comentários:

  1. Formidável crônica Maria da Fonte!
    Este derradeiro momento, é comum à toda gente.
    Para que tanto apego, às coisas materiais, se
    nem o corpo nos pertence...

    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Desconhecia esta tua faceta que a par da poesia faz e ti uma polifacetada escritora!
    Parabéns Lita. Uma narrativa que emociona.
    muitos bjis

    ResponderEliminar
  3. Feliz o homem que toma conta dos seus bens e não é escravo deles.Um abraço, Yayá.

    ResponderEliminar
  4. Uma narrativa que nos prende até à última palavra!!
    Parabéns por esta magnifica crônica!

    Bom fim de semana :)
    Beijo
    Sónia

    ResponderEliminar
  5. Um texto que merece ser lido com muita atenção.
    E reflectido.
    Desejo um bom fim de semana.
    Bj.
    Irene

    ResponderEliminar
  6. "Estava disposto a consultar o saldo da vida e a reajustar a diferença. Queria debruçar o olhar sobre o passado e sacudir as lembranças, mas o peso do corpo começava a aquietar-se ao compasso ritmado dos homens que o levavam."
    Achei o teu conto delicioso. É excelente e qualquer escritor de nome feito gostaria de o ter escrito.
    Mas, quando chegar a minha vez, espero não ter consciência nenhuma do que se passa. Seria um enterro em coma, coisa que só de pensar já me dá calafrios.
    Antes disso, e durante muito tempo, quero beber da tua fonte secreta as palavras que resultam de tanta inspiração e talento.
    Um beijo, querida amiga.

    ResponderEliminar
  7. Nem sempre temos tempo para fazer o saldo da vida! Passamos por ela presos à matéria,sem tempo de olhar para o essencial. A morte não espera... Excelente conto que nos faz reflectir, minha querida amiga Maria da Fonte. Saudades. Beijinho amigo e uma flor.

    ResponderEliminar
  8. Uma ante visão do fim, do nada, da vida? Contas que o tempo baralha e do deve e haver não se sabe como fica?
    Um texto impressionante, pelo próprio tema e pelo modo brilhante como está escrito!
    Beijo amigo
    Graça

    ResponderEliminar
  9. Pssei. Reli.
    Realmente estaa fantástico, Lita
    Bjis

    ResponderEliminar
  10. lindo texto Maria! E uma realidade imensa essa que usa nesse texto reflexivo e poético. Se o homem pensasse um pouco mais, desenvolveria o desapego, pois desse mundo nada levamos e se muito apegados à matéria, teremos um saldo negativo ainda por cima.
    Beijokas doces e boa semana.

    ResponderEliminar