segunda-feira, 18 de junho de 2012

SOMOS UM POVO PACÍFICO





Hoje tive um daqueles dias enormes, em que as horas se arrastavam tão lentamente que eu até cheguei a pôr a hipótese de as expulsar do meu dia. Ai está pasmado! Então veja o que tenho para lhe contar.
Acordei pelas sete da manhã e vesti-me apressadamente para levar os meus filhos à escola, para, de seguida, me dirigir ao hospital, já que me aguardava uma consulta marcada há sete semanas e meia. Sim, há sete semanas e meia. É que na altura andava muito mal da coluna e queria que o Sr. Doutor me resolvesse o problema, ou pelo menos que mo anestesiasse por uns dias. Mas assim não teve que ser e eu fui adormecendo a dor à sombra do abençoado brufen . Cheguei a temer que o corpo se habituasse à droga, mas não, até se portou muito bem.
Até aqui tudo correu lindamente, eram nove horas e já eu aguardava sentada à porta do consultório do Sr. Doutor que, presumidamente, me iria atender. Já com algum tempo para pensar na vida, começa a vir-me à memória uma série de episódios burlescos que me haviam acontecido naquele hospital. Dei comigo a rir-me desenfreadamente de alguns deles, que, na altura, me tiraram do sério e me levaram a soltar a língua. Não é que isso me aconteça com frequência, mas há dias em que perco as estribeiras e começo a exigir que se faça alguma justiça neste país de corruptos. E não leve a mal a minha franqueza, até lhe peço desculpa por esta ousadia. A esta hora o amigo já está furioso comigo e a perder também a sua paciência por me ver constantemente a mudar de assunto. Pois, eu sei disso, mas estou com algum receio, é que eu não vou falar de nenhum funcionário de limpeza, que esses até estavam lá todos e não me aborreceram nada, vou falar do Sr. Doutor que, como já lhe disse, em breve iria ouvir as minhas lamentações. Sim, esse mesmo. Já passavam quarenta e cinco minutos quando ele apareceu todo arreliado e, olhando de soslaio para a sala, foi rosnando baixinho «cambada de malandros, estão tão doentes como eu». Bem, mas isso não interessa, o mais importante é que eu estava prestes a ser atendida e já só precisava de uma justificação para os noventa minutos que iria faltar ao trabalho. Afinal, nem precisei de tanto, o Sr. Doutor foi mais eficiente do que o que eu estava à espera. Ainda não tinha aberto completamente a porta e já ele prescrevia a receita. Diga lá que não foi eficaz. Permitiu-me que chegasse mais cedo trinta minutos ao emprego. Deu um excelente avanço à coisa. Pena é que não tenha ouvido o que tinha para lhe dizer, mas também não faz mal, marco outra consulta e resolvo o problema mais tarde. Hoje também não me dava muito jeito, tenho tanto e tanto trabalho no serviço. Olha, logo se verá o que se pode fazer.
Entro na escola, dirijo-me à secretaria, entrego a justificação e corro aceleradamente para uma sala de aulas. Sabia que nesse dia tinha três substituições a fazer. Tinha sido, antecipadamente, avisada pelo Sr. Diretor. Alguns amigos dele estavam a faltar, parece que tinham ido para um torneio de golfe, e não estariam na escola nos próximos dias, pelo que cabia-me a mim a tarefa de lhes justificar um quinto do ordenado. Acha que é muito? Olhe que não. Quando lhe disser que ainda tinha sete atas para fazer e três vigilâncias, vai-se arrepender de todo o mal que está a pensar a meu respeito. Sim, sim…isso tudo. Os amigos do Sr. Diretor não tinham jeito para a escrita e também lhes faltava pachorra para estarem duas horas especados dentro de uma sala de aula. E eu tinha medo de perder o emprego. Não me chame covarde, amigo, afinal ainda não sabe nada de mim. E se soubesse que eu já fui ameaçada pelo Sr. Diretor, por ousar ripostar a uma ordem sua. Naquele dia andava sem paciência para aturar os caprichos dos amigos do Sr. Diretor. Até desabafei com uma amiga, mas ela confessou-me que em todo lado era assim. No tribunal, ela dava todos os dias mais sessenta minutos para um amigo do Sr. Juiz sair mais cedo, não aguentava tantas horas fechado. Até o marido tinha chegado furioso um dia destes. Era júri de um concurso que tinha havido na câmara, mas o Sr. Vereador avisou logo que não estivessem com coisas, porque o primeiro lugar já tinha sido prometido ao amigo. Ora, como podem ver, esta conversa não veio ajudar em nada o meu fim de dia. Resolvi descansar a raiva num jardim vizinho.
Sentei-me num banco, próxima de uns reformados, e comecei, em jeito de analepse, a recordar o meu dia. Não demorou, porém, cinco minutos e eu já estava de ouvido colado à conversa dos dois homens que ali se encontravam. Dizia um para o outro: «Os nossos políticos são uns corruptos». O outro, com a maior calma do mundo, respondia: «Não te aborreças, homem. Nós até somos pacíficos, como diz o Sr. Presidente».
Fiquei toda a noite a pensar nesta conversa. Pois, eu bem sei porque é que nós somos pacíficos...

Texto: Maria da Fonte
Imagem: naoamiseria.blogspot.com

5 comentários:

  1. E a corrupção já deixou os corredores noturnos, para se deliciar com jogos candestinos em plena luz do dia.
    Será por causa da adrenalina?
    Passeia peos jardins minha amiga, mas não leves as lembranças...vai sozinha!
    Grande abraço

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  2. Este é um desabafo, médico, escola, marido e banco sem descanso em apenas um dia? Você tem toda a razão! Um abraço, Yayá.

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  3. Hola amiga!

    Alguns dias são diferenciados, parecem opor-se o dia todo, entricheirados nós e o mundo inteiro.

    Bjs.

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  4. Afinal, Maria da Fonte, está a falar de um dia em Portugal ou no Brasil? Bom, tanto faz,: o segundo é filho do primeiro. É que aqui, todos os dias, passam "filmes" semelhantes, nesse enredo...

    Um abraço fraterno,
    da Lúcia

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    1. Pois...parace que esta doença se alastrou por todo o mundo.
      Beijinho grande

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