terça-feira, 20 de março de 2012

Paraíso





Olhava à sua volta como se lhe faltasse o eco da dor, sufocado por aquelas quatro paredes brancas. E, em pezinhos de lã, arrastava o corpo combalido, anulando por instantes a existência. A noite aproximava-se como uma farpa.
Sentada sobre um pufe negro que ali lhe fora colocado propositadamente para aliviar o peso da tortura, a rapariga deixava-se enterrar até ao último desejo. Tinha quase as medidas perfeitas, era só manter a boca fechada mais nove ou doze dias e ninguém a iria parar. A porta do sonho estava semiaberta, um pequeno toque e era vê-la nas luzes da ribalta a compilar sucessos. Afinal, de que valia o céu sem as estrelas? De que valia a vida sem aquele brilho intenso, capaz de ofuscar o olhar mais distraído?
Permanecera durante longos meses sob a luz coruscante do seu sonho e nem a exalação do corpo, causada pelo calor tórrido da obsessão, a fez demover um só milímetro.
Os dias foram passando e a mãe, embriagada pelo pavor do último momento, corria freneticamente em busca da última poção mágica capaz de a arrancar daquele inferno. Para amenizar a dor e depositar ali uma réstia de esperança, perdia-se em pensamentos absortos que lhe traziam o último fôlego da alma. Vinha-lhe à memória a famosa viagem de Dante e pensava que também ela teria direito a um outro reino.
-Que Deus teria a coragem de aprisionar ali um seu discípulo? - perdia-se em pequenas questiúnculas que a levavam sempre ao mesmo ponto de encontro, as paredes brancas onde paulatinamente via estancar a última gota de sangue que um dia ofertara a esse Deus de quem agora duvidava. Recusava-se, porém, a desmistificar a tragédia que assolara à sua vida. Tinha medo de pronunciar as palavras, como se elas pudessem vingar-se dessa ousadia. Quando alguém lhe perguntava pela filha, remetia-se, momentaneamente, ao silêncio e, depois de muito cogitar, dizia:
-A minha filha, graças a Deus, está bem. Só anda com um bocadinho de falta de apetite, mas isso talvez seja do calor ou de outra coisa qualquer que a preocupa… sabe como são os jovens.
As últimas palavras, tolhidas pelos soluços estrangulados na garganta, tornavam-se quase inaudíveis. Depois, voltava o silêncio e o frenesim de imagens que lhe invadiam a alma. Não suportava este interrogatório que, como um agoiro, teimava em piar ao seu ouvido. Enterrava-lhe antecipadamente a derradeira esperança. Via nele reflectido o corpo semimorto da filha que deixara naquelas quatro paredes, e, entre o amor e a raiva, questionava-se:
- Onde foi que eu errei? Que posso agora fazer para remediar o mal?
Ficava horas afundada naquela confusão de sentimentos. Até que, para enganar a dor, repetia silenciosamente as últimas palavras que ouvira da filha.
- Mãe, não achas que estás a exagerar? Repara, ainda há muita carne no meu corpo. Eu sei, mãe, que não posso chegar ao limite, mas também ainda estou muito longe. – era com estas palavras que vendava a alma, rasgava as trevas irrespiráveis e pendurava a esperança na nesga de luz que só os seus olhos vislumbravam. Concentrava a sua vontade neste desabafo. Sabia que, sob pena de encalhar na verdade, teria de permanecer adormecida. Não podia ver a filha a entregar assim o seu império. Não tinha forças para apanhar os escombros.
E, entre verdades e sonhos, chegou a noite. Trazia o semblante carregado de pequenos farrapos negros. Aproximava-se um pavoroso temporal. De nada lhe valia abrir os olhos, já só a imagem do Paraíso podia consolar aquela dor.

Texto: Maria da Fonte
Imagem: comunidade.sol.pt
Este texto faz parte da coletânea «Corda Bamba»

1 comentário:

  1. Querida Maria,
    Se paga um alto preço as vezes pelo padrão de beleza e fama... Que triste isso né?
    Beijokas doces

    ResponderEliminar