domingo, 18 de março de 2012

Mãe














Há dias, infinitamente longos, em que me refugio no teu colo e te suplico que me deixes voltar a ser a menina dos teus olhos. Eu sei que tu és frágil, que o teu ventre já não tem o vigor e a elasticidade de outrora, mas o perfume do teu amor é intenso e eu não lhe sei resistir.
Mãe, és capaz de tirar aquele cobertor verde do baú e voltar a aconchegar-me nele? Não faz mal, Mãe. Eu não me importo com a traça. Eu sei que não há bicho, por mais ardiloso que seja, capaz de deixar em farrapos o nosso amor. Se tu me trouxesses aquele cobertor, eu podia mostrar-te como tu me fazias sempre que me doía a barriga. E tu, Mãe, ias ver como eu aprendi bem a lição. Não há cama no hospital, não há banco no jardim, não há berma na estrada para alguém que tem um cobertor tão quentinho para me dar.
Um dia, Mãe, eu vi-te na televisão e o meu coração ficou tão apertado. Como é que isso aconteceu, diz-me, se nós estávamos as duas sentadas no sofá? Hum! Talvez não fosses tu, mas isso não me descansa, porque eu sei que a loja onde compraste o meu cobertor verde vendeu milhares. Onde estão essas mães que um dia se cruzaram contigo? Onde estão esses filhos que elas carregaram no ventre? Não morreram, Mãe! Uma vez eu vi-os naquela festa de anos a que tu me deixaste ir. E tu, Mãe, já foste alguma vez convidada por essas mulheres para uma festa de anos? Ah! Deixaram de os festejar…Que pena! Eu gostava tanto de as ouvir, em bicos de pés e queixos aprumados, a contar, embevecidas, as vidas hilariantes dos seus filhos. Tenho a certeza de que todas essas histórias, com um ponto de exclamação ali, três ou quatro vírgulas a mais e algumas reticências, davam um prémio Nobel da literatura. Achas, Mãe, que as histórias que os filhos agora têm para contar delas também podiam servir de guião a qualquer escritor, ou são tão vergonhosas que nem o ousado Saramago fora capaz de as reproduzir?
Lembras-te, Mãe, do que nos contou um dia a Tia Maria? Ah! Havia muitas…Mas era aquela que todos os dias tocava o sino para o terço das seis. Essa, Mãe! Tinha uma menina de seis ou sete anos que entrou para a escola no mesmo dia que eu.
Um dia chegou a casa com um braço pendurado porque tinha subido a um pinheiro para mostrar que também sabia voar. Dizia ter nascido diferente, metade menina e metade pássaro. Só que as asas dela nem sequer eram de cera, e ela subiu tão pouco, mas caiu no chão mais amarrotada que um Ícaro.
A mãe, com a voz embargada pelo espanto e as lágrimas a lavarem-lhe a dor, dizia:
-A minha menina só está aqui porque teve a mão de um anjo a ampará-la.
Eu fiquei dias e dias a seguir todos os homens da aldeia. Quem seria capaz de segurar uma menina na palma da mão? Tu rias-te de mim, Mãe, e dizias-me que os anjos eram pessoas especiais que habitavam outro planeta e que um dia eu iria conhecê-los. Vivi anos à espera desse dia, até que perdi a esperança. Sabes porquê, Mãe? Porque vi tantas mães a cair e nunca nenhuma mão as amparou. Os filhos andavam muito longe e os anjos talvez tivessem desistido de nos visitar.

Maria da Fonte

3 comentários:

  1. Só os afectos profundos conseguem produzir textos assim. Que ternura tocante!

    Beijo :)

    ResponderEliminar
  2. Mãe: amor incondicional!

    Das ligações da vida, nenhuma é tão intraduzível como essa,


    Parabéns pelo lindo, sensível e saudoso texto,

    ResponderEliminar
  3. Maria,
    Linda homenagem à tua mãe! Pode-se cantar o amor de todas as formas, mas o amor materno é intransmutável, insondável e o mais forte de todos pois´é incondicional.
    Beijokas doces e uma boa semana.

    ResponderEliminar